Hércules Contemporâneo

Dia de poeira levantada. As pessoas reclamam da falta de chuva. Hospitais lotados. Crianças congestionadas. A previsão do tempo aparece com mulheres anoréxicas dizendo que o ar está como o de deserto. Eles não sabem o que é um deserto de verdade. No máximo se enfurnam dentro de estúdios com ar condicionado e exibem pernas com pouca carne, para alguns cães dos telejornais que adoram roer esses ossos. Que se dane se a chuva não cai. Como ateu, não vou responsabilizar nenhum São Pedro, deus ou qualquer outra entidade. Tomo uma cerveja bem gelada e logo estou com fôlego para erguer um carro. Embora não faça. As bancas exibem os jornais, com notícias diárias de manifestações. Me orgulho de ser brasileiro. Estou cagando para esse lance de patriotismo, que me faz recordar militarismo, totalitarismo e toda essa merda. Mas ver a molecada nas ruas, enfrentando a polícia e mandando se foder esse governo corrupto, é demais.

Fico em casa tentando fazer a televisão pegar. A antena caiu diversas vezes e já perdeu um pedaço da ponta. Não pretendo colocar ainda um pedaço de Bombril. É tanto lixo que passa na programação, que logo desligo, preferindo observar as teias de aranha se formando no canto da parede. O canal de música, a cada dez horas de programação, exibe algum clipe que é possível assistir até o final, embora sejam sempre os mesmos, o que entendia. Os pedreiros continuam arrebentando a parede e o meu cérebro com essas máquinas de enlouquecer mentes. Compreendo perfeitamente quando algum operário de obra surta e arranca a cabeça de alguém. Os caras levam uma vida sofrida, com serviço pesado, pouca remuneração e ainda aguentando a ladainha das máquinas e o chororô de quem contrata o serviço deles. A poeira entra por todos os poros da casa. Já começo a cuspir terra e assoar o nariz com catarro preto. A sirene está forte do lado de fora. Helicóptero passando pelo céu. A polícia está agitada hoje. Talvez aqueles estouros não tenham sido fogos.

Todo dia enfrentando a rotina. Não se pode ficar doente ou é olho da rua. Trabalhar no comércio é ficar sentado o tempo todo ou em pé o tempo todo, com aquele sorriso falso. Entram os clientes com aquela superioridade de bosta. Estão devendo até os pelos do cu, mas entram cheios de marra e desejando um tratamento vip. O horário de almoço, quando existe, é corrido. A comida é engolida de qualquer jeito. Entre uma folga e outra a gente pode cagar ou mijar, ou seja, colocar a comida pra fora. Todo trabalhador é um verdadeiro Hércules, já que precisa ter uma força além da que dizem o organismo possuir. Precisam lutar contra a vida, as enfermidades, contra eles mesmos e sobreviver nesse mundo parasita. As chatices burocráticas, desde conferências de mercadoria, até o recebimento de pagamento, com filas enormes e caixas de banco com cara de mortos-vivos, que estão prontos para sugar o que resta de você. O banco é aquela instituição que só te fode, te deixando escravo do sistema, a ponto de fazer muito pai de família enfiar uma baça na cabeça. Que bom que de vez em quando alguém invade essa merda e faz um belo saque apontando armamento pesado para quem se atrever a interferir nessa forma de burlar o sistema. A verdade é que muitos desejam fazer o mesmo, mas não possuem coragem para isso.

É hoje o dia da cobrança. Três homens. Eu e mais dois. Cada um com sua pistola. O anúncio do assalto. As pessoas para o chão.

— Esvaziem a porra dos caixas! As carteiras são entregues. Poucos minutos. Sem reação dos guardas. Um dos comparsas era segurança e liberou o alarme. Na saída, a perseguição. Agora com certeza não eram fogos. O veículo abandonado próximo a um beco. Cada um por si com seu saco de dinheiro. Sinto a fisgada nas costas. O sangue escorre. O fôlego vai acabando e o beco também. Uma pequena passagem por um carro que estava estacionado. Consigo mover o veículo, empurrando. Realmente eu consigo fazer isso. O sangramento aumenta. Atiro contra meus perseguidores, que revidam. Entro em um mini mercado. Pego a primeira menina que encontro. Até se parece com minha filha, que não vejo a mais de um ano. Não é minha filha. A seguro pelos cabelos. Cercado e acuado.

— Solte a garota e se entregue!

Poucas opções. Me escondo atrás de uma prateleira. Consigo ir rastejando com ela até o pequeno frigorífico. Todos para fora. A polícia negocia. Estou seguro aqui dentro. Retiro algumas notas e enfio dentro do short da menina.

— Você vai sári dessa. Se acalme. Se parece com minha filha. Essa grana é sua. Logo vou te liberar. Vou te dar o conselho que não dei para minha filha. Procure fazer pouca merda para que não tenha o meu destino.

Abriu a porta e liberou a menina, se trancando em seguida. Começam a tentar arrombar a porta. Aquele monte de carne congelada. Cadáveres de animais. Tudo carne. Encosto em um pernil e coloco o cano dentro da boca, apertando o gatilho. O estouro foi no instante que arrebentaram a porta. Choros, gritos e expressões atordoadas. O saco de dinheiro sujo de sangue caído ao lado. A adolescente, em prantos, escondeu o dinheiro dentro da calcinha. A polícia dizia que estava na captura dos outros dois meliantes. As pessoas estavam chocadas a que ponto a violência havia chegado. Os pais da menina apareceram, preocupados com a filha e procurando tirar ela do local sem prestar esclarecimento à polícia. A cidade segue sua rotina. A imprensa local voa para o lugar, desejando cobrir o fato e ter picos de audiência. Já haviam conseguido a ficha do homem assassinado. Marcaram uma entrevista com a filha do assaltante, que disse pouco saber sobre o pai, e que o afastamento havia sido melhor para ambos, já que ela se dava melhor com a mãe. Em menos de um ano as pessoas já haviam esquecido o incidente. A adolescente gastou o dinheiro sem comentar aos pais. Conseguiu se embebedar algumas vezes e engravidar antes dos quinze anos, nem se recordando da fala do sequestrador. Agora iria colocar um filho no mundo e estava preocupada, já que não sabia como lidar com isso.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 07/09/2013
Código do texto: T4471124
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