Agulhas

Nessa vida de hábitos carcerários, é possível ver o cenário através das grades. Toda casa não passa de uma jaula, adaptada dos antigos modelos de caverna. Não é mais apenas proteção. Existe a necessidade de conter essa besta que habita o interior de cada um de nós. O vizinho não passa de outro exemplar. Ficamos um ao lado do outro, nesse zoológico cretino. Penso naquelas manchas de umidade no teto, da última goteira que insistia em cair próxima a minha prateleira de livros. Pouco tenho me dedicado às leituras, restando à caça por focos de formigas na casa. Ontem queimei um formigueiro no terreno ao lado. Era possível ver as primeiras formigas vermelhas saindo, quando perfurei aquele maldito formigueiro. Foram avançando enquanto eu derrubava o produto inflamável, depois apenas risquei alguns fósforos, já que o vento tentou impedir minha façanha. Quando era pequeno foi empurrado em um formigueiro desses, fazendo com que a alergia, que até então era desconhecida, aflorasse. Me recordo de criança, o corpo todo empolado, sendo colocado dentro do tambor onde estavam as bebidas da festa, para que retirassem os malditos insetos. Meses tomando injeções para combater o inchaço.

O sol tenta se esconder entre as nuvens, mas o mormaço demonstra que está bem nítido em nossos corpos, sugando cada gota. Os pássaros seguem em ritmo alucinante, dando rasantes incríveis. Raspo o canivete contra o tronco da árvore, desenhando um pentagrama invertido. Abrigado embaixo da folhagem, coberto pelas sombras. Tento acerta a pedra o mais longe possível, atingindo uma placa devorada pela ferrugem. Os óculos embaçam, a camisa serve de flanela, e a saliva de desengordurante. A bermuda rasgada, expondo a cueca, que por ser da mesma cor, camufla o rasgo. Agora sinto saudade de um bom romance para poder absorver bem devagar nesse cenário ocioso. Meu ócio é transmitido a essa atmosfera, que parece a cada instante mais lenta, preguiçosa. O sol parece vagaroso, como se o Grande Escaravelho estivesse de saco em cheio em empurrá-lo. Arranco algumas folhas e passo a mão nas dormideiras, vendo as folhinhas fecharem, como uma virgem que tenta resistir ao toque, juntando as pernas.

As tatuagens parecem desejar se desprenderem de minha pele. A tinta começa a espalhar, como se desbotasse. A pele reage ao pigmento. Sinto todas as agulhas, trabalhando ao mesmo tempo, em todos os poros. Os milhões de furos são uma espécie de acupuntura selvagem. Vou cobrir todo o meu ser com essa imagem de mim mesmo. Até que tudo seja uma grande tela, em que eu consiga expressar essa fábula chamada “EU”. Vou rasgando cada parte desse corpo decrépito, recriando todo o seu formato, em uma estética de desumanização. Devoro cada milímetro. Uma auto-antropofagia. O beijo é a minha primeira maneira de devorar, sentindo o gosto, provando com lábios ávidos de sabor. Dissolvendo a estrutura patética desse sujeito gregário. Decompondo em fezes para fertilizar esses campos de incredulidade, até que preencha cada uma dessas covas epidérmicas. Sou um cemitério vivo, carregando essa grande quantidade de túmulos, transbordando através deles, com as larvas não sendo contidas e fazendo volume de batalhões ao lado das minhocas que perfuram o pouco de consciência que minha razão ainda fabrica.

Agora deito. As narinas entupidas. A respiração ofegante pela boca, que tenta fazer todo o processo respiratório em ritmo acelerado. Inspira e expira. Sufoco com as trocas gasosas. A pele toda respira, os poros parecem não dar conta. Talvez pela tintura que os veda. Dizem que é possível aliviar a tensão. Uma agulha comprida é introduzida dentro de minha narina direita, rompendo todo o grosso tecido nasal, como se me fizessem um piercing. Mas existe a dúvida, se o objetivo foi alcançado e a enfermeira, pede auxílio. O sujeito diz que precisa ir até o ouvido, que alcança o tímpano, se preciso for. Mais e mais a agulha me invade. Sinto o ouvindo abrindo, como se uma tempestade inundasse minha cabeça. Algo parece se romper. Aquela ponta parece uma espécie de afinador, que tenta achar o tom certo, com meu corpo duro diante de um espasmo feroz. Espremo a cabeça, as pontas dos dedos tentam estourar os olhos. Mas penso que isso tudo é tolice. É apenas mais uma agulha. Nada mais. O lábio já começa a mover-se. Surge o esboço de um sorriso maligno, que ninguém percebe. Somente o armário de metal, que reflete, se fazendo de espelho.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 01/09/2013
Código do texto: T4461658
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