Com o Pé na Cova

De cabeça baixa, apalpando a terra com os pés calçados em sapatos rotos. Tocando na escuridão. Ouvindo o silêncio que paira no ambiente pouco frequentado. As mãos trêmulas tentam segurar o ar que escapa por entre os dedos. A boca treme, mas não por congelar e sim por um ato maquinal de nervosismo. Os olhos vidrados diante desse manto escuro que cobre a realidade. o cigarro aceso se faz de ponto luminoso, como um farol no mar das trevas. A fumaça sobe em direção as nuvens, tentando se juntar a condensação. A lua parece ainda mais amarelada, como se recebe alguma porcentagem daquela nicotina. O corpo apoiado sobre um túmulo. Aquelas letras gravadas na lápide rachada. Uma barata sonda a pedra, ainda tímida, com suas antenas captando tudo ao redor. Uma coruja vira sua cabeça, contemplando suas presas e indo de forma veloz atrás de sua refeição.

Um rato morto está coberto de formigas, que logo transportam generosas porções daquele banquete. A poeira é soprada mansa. Uma árvore de algum fruto desconhecido, deixa desprender pequenas porções de suas sementes, tentando fertilizar aquela cova revestida de concreto, fazendo com seus frutos mal nascidos façam companhia ao cadáver, ambos em estado de putrefação. Só que o primeiro está a olhos nus. Agora são os morcegos que bailam, com seu som característico. Uma pedra é atirada contra um tronco seco escorado próximo a uma cova. O buraco pede que seja preenchido. Alguém precisar repor o dano causado a Terra, devolvendo um corpo pela sua porção que foi retirada. Uma oferenda. O buraco quase serve de poço, se não soubéssemos que tipo de conteúdo ela irá abrigar. Antes do defunto, outras criaturas vagueiam por ali, com minhocas saindo por brechas da terra bem tratada. A foto de uma pessoa esquecida, com o vidro que a emoldurava trincado e o papel amarelado, com aquela imagem em preto e branco.

Uma garrafa de aguardente deitada em uma valeta, toda empoeirada. Em um caminho de vielas tumulares, um despacho muito bem preparado. Garrafas de vinho, taças, charutos, algumas comidas em potes de barro, tudo sobre uma bela toalha e muito bem organizado. Que belo piquenique. Aproveito a brasa do cigarro e acendo um dos charutos. Não é dos melhores. O sabor daquele fumo de casa de santo e as baforadas que formam grossas nuvens. A garrafa de vinho é aberta com o canivete, que empurra a rolha para dentro da garrafa. Bebo no gargalo, engolindo alguns pequenos fragmentos de rolha. Que se danem as taças. As flores são jogadas em cima do túmulo ao lado. Deito sobre a lápide e contemplo as estrelas, contando cada uma delas, até que venham as verrugas. Encontro a música que necessitava. Em minha cabeça, começo a me recordar de alguma coisa do Eric Clapton e fico balançando levemente o corpo, embalado pela madrugada.

Encontro um caixão esquecido. Me acomodo dentro dele, com seu forro macio e esqueço da vida. Acordo depois de horas. Acredito que tenham se passado horas. Sufocado. Aprisionado. Grito, mas ninguém me escuta. Me sinto apertado e o ar cada vez mais fraco. Não creio que desmaiei de bêbado dentro de um caixão e que me enterraram vivo. Bato na tampa, que está lacrada hermeticamente. Não existia calma, apenas raiva pela minha idiotice. Toco de leve e sinto que a garrafa veio comigo, restando ainda um último trago de vinho barato. Absorvo lentamente, pensando em logo estarei adormecendo novamente e acordando desse pesadelo. O efeito não foi o mesmo. Continuo acordado e cada vez mais ofegante. As mãos arranham a madeira, com as unhas tentando rasgar a tampa. Consigo apenas rasgar os dedos, com cacos de unha sendo arrancados e a sensação de sangue e ardência na ponta dos dedos esfolados. O corpo se debate, sufoco, engasgo, chego a perder os sentidos. Volto a respirar. Nessas horas seria melhor não mais acordar. Começo a engolir o suco gástrico que explodi em um refluxo causado pelo corpo que sucumbe. Agora o engasgo parece fatal, pois já não sinto mais o corpo, como se tudo se acalmasse, restando apenas um som que parece o das minhocas. Sem céu e sem inferno, apenas morto. Esquecido. Carcomido.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 28/08/2013
Código do texto: T4456282
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