Faz de Conta
Era um dia daqueles em que a gente não sabe qual motivo de estarmos vivos. A chuva caía e as pessoas estavam escondidas em suas casas. Ainda assim, era possível avistar um grupo com cobertores sobre as cabeças, a procura de alguma marquise. O vento gelado fazia até os pentelhos arrepiarem. Um bom trago de conhaque ajudaria. Mas existem as privações. O aroma do cigarro vindo da casa vizinha, penetrando as narinas ávidas por nicotina. Até os cães se calam, encolhidos com seus preciosos rabos. Os gatos trepam nos bueiros, com gritos que fazem o sexo parecer tão doloroso. Se os homens tivessem estas cerdas espinhosa, muita mulher ia pensar mais antes de introduzir dentro delas. E muito sadista adoraria ver sua fêmea sofrendo. Mais isso faz parte de nossa insanidade, os outros animais são menos cretinos.
A toalha da mesa é trocada diariamente. Sempre aquela nova mancha que insiste em decorar o pano. Basta um molho mais agressivo e pronto, a mancha estará lá. A televisão serve como objeto de decoração, encostada no canto da parede, coberta de uma camada fina de poeira e algumas teias de aranha. Adoro a forma como as aranhas limpam o ambiente destes pequenos seres irritantes chamados mosquitos. O tolo voador vem com sua velocidade e quando se dá conta, está enrolado e se enrolando ainda mais em um tecido meticulosamente trabalhado para ferrá-lo. O que é um saco é caçar as teias de aranha que se acumulam nos cantos das paredes. Uma briga para identificar e impedir que logo seja você o embrulhado. As cartas de baralho estão esquecidas dentro de uma caixa no armário, disputando espaço com um consolo e alguns preservativos que estão para perder a validade.
Pessoas discutem sobre dois homens que se beijam, como se fosse um crime brutal, ignorando o pedinte esfomeado do outro lado da calçada. Mundo louco. Por falar em gatos, vejo uma mulher que pede carona. Ela entra no carro e se insinua, dizendo que conhece um bom lugar. Muitos homens se deixam levar pelo pinto e nessa hora que acabam se dando mal.O local onde ela se hospedava era nojento e espero que não more ali, já que acredito ser impossível alguém manter uma aparência tão medonha por tanto tempo. Ela logo oferece bebidas e tira a roupa, como se fosse profissional do sexo. Quando me dou conta, estou nu, sentado na cama e como uma sensação estranha, parecendo que havia sido drogado. Ela saca uma faca e começa a cortar meu pênis, fatiando a glande, arrancando camadas. A droga deve ter anestesiado. Fico horrorizado, mas não sinto dor. Por fim, arranca de vez a cabeça e arremessa a uma certa distância, indo embora em seguida. Tento gritar e não consigo, como se a voz estivesse sufocada.
Acordo embaixo do chuveiro. Mais um grande porre. Confiro logo e vejo que está tudo no lugar. Um pouco de sangue escorre atrás da cabeça, pois havia escorregado, caído e batido contra os azulejos. Ouço a campainha e vou atender, abrindo apenas uma fresta da porta para conferir quem teve a ousadia de me importunar. Uma mulher aparece, vestida com maquiagem para uma dúzia de menininhas do ensino fundamental. Diz que está caminhando à toa e que já havia me visto em outra ocasião, pedindo para entrar e tomar uma bebida, já que o frio estava castigando. Abro a porta e sirvo logo dois copos, bebendo minha dose primeiro. Enquanto ela se voltava para a direção do sofá e remexia a bolsa, a acertei com pedaço de ferro na cabeça. Ela apenas estava buscando o batom. Mas por via das dúvidas, me recordara do sonho. O objetivo foi dar fim antes que ela pudesse acabar comigo. O corpo tinha algumas contrações, a pancada foi forte.
Naquela madrugada, foram horas e mais horas cerrando aqueles pedaços de carne e reduzindo ao máximo, para tentar desfazer do flagrante. Uma desconhecida morta ao acaso. Nada de remorsos. A carne separada dos ossos e fervida até não restar mais nada. O sangue fervido e os ossos, esmigalhados a cacetadas de marreta, para depois se misturar a argamassa e servir de contenção para o vazamento da pia da cozinha. Muitos usam os pós dos mortos para serem jogados por aí, poluindo ainda mais as coisas. Esses foram aproveitados melhor. Verdadeiros ossos do ofício. Agora com uma cartela de cigarros e uma boa garrafa de conhaque. Bebendo no bico e soltando baforadas. O vento continuava uivando, feito um lobo terrível e incansável. Em cima da mesa, um romance de Joyce esquecido, servindo de apoio para uma série de revistas idiotas, que se compra em dado momento, para dizer que se informa a respeito dos fatos patéticos da sociedade que a imprensa vendida insiste em divulgar. Mercenários de merda, que se vendem por qualquer porcaria. Gente sem princípio.