Sorriso Macabro

Essa boca faceira, exibida. Mostra os dentes em uma viela. Despegada do corpo, como se fosse um riso acidental. Amedrontador confrontar-se com aqueles olhos fundos, que parecem nunca terem estado em uso. A bocarra escancarada. Essa abertura engole-me aos poucos. Quando me dou conta, sou engolido com tudo. Tento afastar os passos para distanciar o terror. Como é terrível saber que é impossível que se saiba de algo realmente. O pé vacila e a mão escora na parede, sentindo os tijolos lodosos. A chuva ainda escorre dos beiras, como se fosse uma cascata que insiste em prosseguir, mesmo sem o incentivo da nascente. Uma morrente. Um rio dos infernos. Não sou Hades, nem Caronte, mas fui deixado aqui. Nada de lábios para beijar, apenas os estranhos dentes a brilhar.

Esse cadáver esquecido. Que triste fim. Talvez glorioso, já que muitos ascendem no submundo. O cérebro começa a tentar organizar a cena. Os elementos deixados não passam de um jogo sem vencedores. Uma vítima nunca deixa de ser porque se desvenda um crime. Cometemos mais crimes para tentar dar o troco aos algozes, mas não passamos de vingadores togados. Nada de perito, delegado. Caminhando após a bebedeira, entrando em um beco escuro qualquer, a serviço de quem convier. Mas eis que surge minha companhia, com sua risada escandalosa, apesar de silenciosa. Não sei se chamo de puta caveira, já que pelas roupas é um homem, o defunto do beco. Não sou nenhum furtador, que possa aliviar os pertences do morto. Deito ao lado e dou um arroto. Que a polícia venha logo e me prenda, já estou acostumado às algemas. Na cela é possível descansar em paz, sem a preocupação de pagar aluguel e coisas do tipo.

Me equilibro um pouco e inclino o corpo. Mijando ao lado do cadáver. Não é depois de morto que teremos decência com estes miseráveis. Um cigarro ainda salvo no bolso esquerdo da calça. Pergunto se o morto tem fogo. Acabo acendendo com meu próprio fósforo. Uma tragada, duas. Vou enchendo o pulmão dessas porcarias. É quando a gente perde que nos alegra a vida. Nem um tostão. Tudo gasto e gastado. Muitos poderiam nos confundir lado a lado, um morto-vivo e um vivo morto. Fé é o que menos importa numa hora dessas. Logo amanhece e o comércio levanta as portas. Talvez não venham aqui com freqüência, pois já teriam encontrado esse pobre coitado. Mas os que cuidam de sua carcaça são os ratos, famintos e pouco seletivos. Acabo de ganhar um confidente, que me consola de minha própria amargura, um corpo que estendido na rua, sabe mais do que qualquer um desses vivos poderia um dia prever.

Mais dia e menos dia. Esse relógio já foi esquecido. Guardo as horas na mente conforme o passar do dia, se é claro ou noite, se calor ou esfria. Um sujeito sem passado, que se conforma diante desse ingrato presente. Busca viver como ausente, caindo por esquinas na madrugada. Agora sabe mais sobre seu novo amigo, pois pela posição que está, foi morto com um tiro. A bala arrebentou a cabeça e perfurou a lixeira vazia. Trata-se de um suicida que deixara a arma do crime ao lado, intocável após pela última vez a utilizar. Que sorte ou azar desse curioso bêbado, que conseguiu detectar ainda um projétil, talvez pela precaução de o primeiro disparo não funcionar. Deita-se ao lado e diz a ele, “companheiro, a você vou me juntar”. Aperta contra a têmpora e um segundo disparo, que não fez com que a arma travasse, apesar dos dias na chuva e dosa ratos a perscrutarem. Nada disso chamou a atenção do restante da cidade, que seguia sua falta de novidade, esquecendo seus corpos próximos a escondidos lixos. Satisfazendo a fome dos roedores e compondo o cenário de um circo dos horrores. A oportunidade aparece para quem deseja se aproveitar dela, podendo viver para sempre ou morrer em uma sórdida viela.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 14/08/2013
Código do texto: T4434538
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