Senhora Morte

Distinta criatura que vaga pelas ruas, quase imperceptível. Consegue vê-la nitidamente, não da forma real, mas como uma senhora de alta classe, elegante, que desliza por vielas obscuras, inocente em meio à violência desses lugares sombrios, que abrigam os crimes mais hediondos. Indiferente aos outros transeuntes, com seu chapéu majestoso, apesar de simples. Mantendo os belos cortes de um adorno de cabeça, mas sem exageros de plumas ou algo do tipo, um acessório mais sóbrio, menos extravagante. Cabeça baixa fitando o solo ou escondendo dos outros o seu tenebroso olhar. Os cabelos estão acolhidos dentro do chapéu, nem uma ponta sequer solta, um pequeno volume sobre a nuca, escondendo aquela nudez que deixam os amantes ofegantes. Luvas e nada de bengalas ou outros apoios, caminha com passadas firmes. O vestido combinando com o restante dos acessórios, cobrindo aquele corpanzil, que não se pode deduzir que seja mais ou menos desprovido de carne, já que o volume da indumentária engana.

Chega próxima a uma residência. As pessoas ali ainda dormem. Somente uma mãe mantendo-se acordada. Seu desespero sabendo a respeito de doença maligna que contraíra. Ainda não tivera a coragem de fazer o comunicado a amada família. Os olhos marejados e a expressão de dor. Um toque na campainha. Imagina que acordará os outros que ainda dormem. O marido fora abandonado no leito, com passos vagarosos sobre tábuas envelhecidas. Uma senhora se apresenta perante a porta, muito distinta e de voz melodiosa. Antes que pedisse para entrar, já menciona que sabe a respeito do drama vivido, que veio que lhe socorrer e que ninguém saberá que ali esteve ou ouvirá sua voz e chamado junto a porta. Só é ouvida e sentida por quem deseja se fazer sentida ou escutada. A mulher se desarma ao fitar aqueles olhos sombrios. A visita entra e senta no pequeno sofá da sala. Pensa em preparar um café, mas a mão em luvas segura delicadamente seu pulso e diz que merece seu descanso, a família precisa se despedir dessa mãe valorosa e caminhar por seus próprios passos. O pranto cai em forma de cascata, com soluços. Um breve adeus foi consentido. Ao voltar, fora presenteada com um chapéu simples, com uma pequena flor pendurada. No outro dia a família velava uma dona de casa amada.

Outro local. Um canteiro de obras, onde mais uma vez o sujeito se entregava ao vício da bebida, largado e sem condições de retornar para sua casa. Já havia esbofeteado a esposa e os filhos o temiam. Estava por um fio de ser demitido. As garrafas vazias eram uma espécie de enfeite no seu altar do desespero. Oferecendo-se em holocausto. Sua visão turva enxerga uma grã-fina que caminha resoluta sobre os escombros daquele terreno. Esfrega os olhos e a imagem não some, ficando mais nítida ao se aproximar. Sussurra em sue ouvido que é preciso deixar essa vida de álcool, que expirara seu prazo aqui. Os olhos mais uma vez eram uma sentença irrevogável. O sujeito não se desespera, parecia esperar ansioso por esse encontro. Toma seu último trago, contemplando com devoção aquela figura magnífica. Recebe de presente um chapéu envelhecido, com as bordas bem gastas, que cobre sua cabeça calva sem muita preocupação. Os operários ficaram assustados ao verem aquele coro sem vida próximo ao local de trabalho, mas não surpresos que verificarem de quem se tratava. A própria família do morto não recebeu a notícia com tanta comoção.

Um bebê nasce em uma maternidade. A mãe, desesperada, um parto difícil. O pai e outros familiares, aguardam ansiosos por notícias. O corpo médico se esforça para salvar o recém-nascido, já que a parturiente encontrava-se são e salva. No momento que o pequeno é deixado na sala, só, com os aparelhos auxiliando sua respiração. Uma figura entra imperceptível. Só a criança percebe a presença e abre seus olhinhos. Com ternura sorri ao ver aquela doce senhora, que afaga as bochechas gorduchas e com delicadeza coloca um pequeno gorrinho naquela cabecinha. Logo os médicos observam o declínio da linha da vida, que estaciona naquele perímetro mediano que é irreversível. Mais nada a fazer. Apenas o consolo aos pais desesperados. Uma cruel rotina. Alguns enfermeiros se indignam com o fato. Uma alma tão inocente e já sendo ceifada do carinho familiar ou como alguns mais pessimistas indagaram, salva desse mundo horrível.

A Senhora Morte segue pelo mundo, podendo se deslocar a grandes distâncias a incontáveis velocidades. Não se sabe que meios utiliza, já que certos mistérios não nos competem. Ainda é possível narrar uma outra experiência. Quando parava em um parapeito, confrontando uma suicida, que após algumas doses extras, cansada de tanta amargura, abria mão de sua existência. O espanto ao ver aquela senhora, que a olhava, não como quem deseja impedir o ato, mas confortando a vítima diante de sua própria tragédia, pronta a recebê-la com carinho em seus braços. Um chapéu com cordão que fosse possível amarrar e que não caísse durante a violência da queda. A moça deu um breve sorriso e se jogou para o solo, com seus ossos espatifando de encontro ao solo de concreto. Com o impacto, um senhor assustado que fumava após beber seu café matinal, sentira as primeiras palpitações no peito. A senhora já estava ao seu lado, fazendo passar em sua mente as lembranças de quando era boiadeiro e toda sua infância de labuta nas lavouras, o corte de cana e a fome na época de infância no sertão. Sabia que era a sua hora, uma leve oração a Nossa Senhora. Recebeu um belo chapéu de peão e resignou-se a acolhida. Os que chamaram autoridades e foram verificar a suicida, nem se deram conta daquele outro falecimento tão próximo.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 27/07/2013
Código do texto: T4406902
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