A Menina Sem Face
Esta pequena donzela, de rosto sofrido. Creio que seja. Dedução óbvia, pelo simples fato de viver ocultando essa face. Não se sabe que contornos têm. Claro que é menina. Acreditam que a mulher é mais atrevida e já perdeu essa candura. Fábulas de uma mentalidade feminina que não passa de machista. São tantos istos e aquilos. Muito tentam vislumbrar aquela fronte, mas se tornam depressivos pela não realização do desejo. Uma espécie de Medusa, que recusa petrificar, resistindo ao máximo ao poder da curiosidade. Ser selvagem, que foge dos olhos que fitam, uma espécie de misantropia bestial. Uma fera menina que devora sem limites, a ponto de diluir a alma, deixando em frangalhos qualquer sensatez. A razão não passa de aperitivo. Caçadora de ambições cognitivas. Faz de sombra precoce, que sem se mostrar, engole qualquer claridade que queira usufruir de seus mistérios.
A cada novo desejo que temos de devorar, provar daquela criatura, ela nos consome. Somos um Prometeu que se considera mais feliz, indo ao encontro do que lhe devora, de bom grado. Doa-se com devoção, já que exalta essa magia. O ósculo reprimido, não sabendo nem mesmo se possui lábios e todo o conjunto bucal que auxilia na arte do beijo. Se é mulher, presume-se que satisfaça as indagações da libido. Mas é menina e sua inocência pode ser um disfarce de algo experiente, que sente e ressente. Serpente que se encolhe, pois o corpo curva-se em uma postura declinante. Deseja voltar a se integrar a terra, a busca pelo útero, seria o de sua mãe ou a de todas as mães, o de Gaia. Feto de modo algum reto, como um réptil desejando enrolar-se em si. Torta a ponto de formar uma espécie de broto que sofre o processo contrário de germinação, retrocedendo.
Os cabelos são sua pequena selva, formando quase um,a face avessa que tenta saciar a curiosidade alheia. Suas costas é o cartão postal, onde demonstra a natureza primitiva de sua existência. A sua fala poderia ser uma espécie de sopro, uma oração que só alcança a mente dos que ali depositam sua fé. Provocando marcas, como chagas, que se espalham na superfície que tenta enquadrá-la. Busca deslizar pela moldura, invadindo a mente no primeiro contato visual, contaminando da forma mais sedutoramente possível. Pode estar nua, quem sabe vestida com algo que tenta lhe servir de veste. A escuridão lhe veste bem, com suas asas longas, que tocam os cabelos e fazem da face uma caverna de fundo inalcançável. Que dilema para Platão, ter que voltar tão rapidamente para essa outra cova, a ponto de se precipitar nas sombras cada vez mais.
Anjo, talvez. Já que todo demônio parece ser uma personificação do rosto angelical. Busca cavar as paredes, sumindo contra superfícies que ignoram a ânsia dos que desejam usurpá-la. Violadores malditos, feito cães ao sentirem o cio das cadelas de rua, com suas línguas de fora chegam a bufar e babar. Nem que se fizesse uma passeata de lanças fálicas, conseguiriam despertar a atenção da sombria menina. Sua cova é tão rasa, que não conseguem deixar de se aprofundar na superficialidade que lhe serve de couraça. Nem ela mesma consegue fitar os próprios olhos, enterrada em um par de ombros que são uma muralha, que consegue lhe isolar. Suas costas escorrem feito um vestido, misturando ao que desejaram lhe fazer de veste. Sem nome, sem rosto. Muda, surda, cega, privada de vários sentidos. Por isso capta tanto dos que se aproximam, um espectro que se agarra a qualquer esperança que possa lhe humanizar. Parasita que se hospeda de longe, infiltrando-se as mais sutis percepções. Faz com que o outro se torne esse nada que lhe é comum. O outro se torna um outro de si. Sem a própria referência, vaga eternamente para esse abismo que atrai tudo que se perde.