Relatos do Quinto Dia, por Anelise Hansen

Estou com medo, muito medo. Não sei onde estou, o que eu estou fazendo, mas estou com minha camisola por debaixo de uma roupa rasgada de enfermeira, encostada no canto, dentro de um mausoléu. Não consigo pensar em nada além de escrever para tentar me acalmar e ainda assim eu estou com muito, muito medo.

Depois de ter terminado de escrever o dia anterior, eu vi, ao meu lado da cama, uma silhueta. Era uma criança. Depois que ela olhou para mim, ainda nas sombras, eu percebi que era meu filho. Eu comecei a suar, comecei a tentar me mexer, a tentar gritar, mas nada saía de mim, era como se eu estivesse paralisada. Uma pressão muito forte se fazia sobre meu peito, me impedindo de respirar. Os olhos de Ian brilhavam em um tom branco, da mesma forma que eu vi diversas vezes naquela coisa que sempre me perseguia. Eu achava que era tudo coisa da minha cabeça, até ontem, mas me pareceu muito real. Aqueles olhos, vindos do meu próprio filho... Ele chorava sangue, eu conseguia ver através da escuridão do quarto, e eu não podia fazer nada. Eu vi ele dizer bem claramente “Foi assim que ele me matou”. Então ele começou a se abrir, literalmente se abrir. Eu via sua unha abrindo a própria carne do peito fraco e a outra mão o abrir lenta e dolorosamente, embora não expressasse reação alguma perante a dor.

Mas dentro de seu corpo frágil, não havia nada. Era como se estivesse oco, estivessem faltando todos os seus órgãos, era medonho, pavoroso e nojento até para alguém acostumado com o corpo humano, até para mim, que era uma das poucas alunas que, ainda em estudos, já acompanhou várias sessões de necropsia em óbitos das mais diversas causas. Ele parecia ter sido devorado de dentro de sua alma até a beira de sua pele.

Eu estava sufocando, mas estava sem conseguir me mexer. Não entendia o que acontecia, eu só agonizava, me sentindo impotente em relação ao meu filho e ao mesmo tempo, impotente em relação a mim mesma, que nem conseguia respirar sozinha. Até que eu consegui pronunciar alguma coisa em um único suspiro. “Quem?”

Foi quando eu consegui recuperar meu auto controle. Levantei e olhei no relógio digital que estava pendurado em cima da porta, era quase duas e meia da manhã. Levantei e aumentei a intensidade da luz de canto através do aparelho que ficava perto do criado mudo. E eu vi no chão uma coisa quebrada. Um porta retrato. Aquele novo que eu comprei, com o vidro para o chão e a foto da família ainda nele. Eu peguei do chão e eu vi a resposta de Ian à minha pergunta, e eu tive certeza. Mais uma vez, o tricô separava Jonathan do resto da família, e uma marca de digital estava marcada no vidro, bem em cima de seu rosto.

Eu corri para o banheiro, ainda ofegante. Estava ficando tonta. Enxaguei meu rosto com voracidade e olhei para o espelho. Estava com um aspecto selvagem, muito anormal para mim mesma. Enxuguei com a toalha e olhei para fora da janela, que ficava bem no alto, usando a tampa da privada como escada. Eu vi, mais uma vez, a sombra da minha criança lá embaixo. A visão do cemitério era nítida. Lembro até de quando minha mãe costumava brincar com o fato de um hospital regional ser bem ao lado do cemitério, dizendo que quando alguém morria, eles só jogavam o sujeito por cima do muro.

Eu iria até lá, d qualquer forma. Era estranho o fato de que eu estava sozinha no quarto, geralmente sempre ficava algum acompanhante, mas eu estava mesmo sozinha. Me perguntava onde estava Jonathan naquela hora, se o infeliz havia sumido. Eu sabia. Perfeito demais. E era estranho, por que... eu o amava demais.

Embora não soubesse bem o que estava prestes a acontecer, sequer o real motivo de eu estar seguindo um fantasma pra dentro de um cemitério quase três da madrugada, estava certa de que era para o bem do meu filho. Eu também não saberia dizer qual seria minha reação se eu encontrasse meu marido, ou sabe Deus o que é aquele homem.

Eu só sabia que não podia sair do hospital assim. Então, toquei o interfone para chamar a enfermeira e me fechei no banheiro com uma gaveta que eu esvaziei do criado mudo. Tinha que fazer alguma coisa para sair de lá. Eu ouvi a enfermeira entrando e eu pulei em cima da pobre mulher com um pedaço de madeira direto na cabeça. Ela caiu, mas estava consciente. Perdi a conta de quantas vezes eu acertei a cabeça da mulher, mas ela estava desmaiada. Só esperava que eu não a tivesse matado. Sinceramente esperava.

Peguei suas roupas e me troquei. Por sorte, a enfermeira era magra e tinha alguns centímetros a mais do que eu, nada que não me deixasse diferente de como eu era quando ainda trabalhava em outra unidade daquele hospital. Por um segundo ou outro, talvez eu pudesse até ter reconhecido a loira alta que estava desacordada aos meus pés, mas não estava preocupada com isso.

Coloquei a roupa por cima mesmo e saí com pressa pelos corredores, evitando ser parada por alguém. Fui até um corredor e para esperar o elevador esvaziar, entrei numa sala ao lado, nem ao menos percebi o que era aquela sala, mas havia sido por muito pouco. Quem saiu do elevador havia sido Jonathan.

Olhei em volta e vi que estava na sala de cirurgia, uma outra ala do hospital. Tive que me conter em pegar aquele bisturi e avançar na garganta de Jonathan. Quando eu tomei coragem e saí com a ferramenta na mão, por sorte, ou por Deus, ou por qualquer outra coisa que estivesse ali presente, ele havia saído de meu campo de visão. Foi quando desci para o térreo e para não chamar atenção, tentei sair pela porta dos fundos, ao invés da recepção.

Estava no corredor que dava direto na porta. Corri em direção à porta e até devo ter deixado meu chapéu do uniforme voar. Mas descobri algo que não era nada bom. Aquela saída passava primeiro pelo necrotério. Era a saída que levava direto para o cemitério. Estava tudo muito mal iluminado, com algumas luzes sobre um cadáver aberto e alguns corpos etiquetados ainda esperando para serem colocados na geladeira. Não havia ninguém lá fazendo algum tipo de procedimento, então, não entendia por que ainda estava aberto, aquele corpo. Me aproximei dele, sem entender. Era uma mulher.

Era a mulher que eu havia deixado inconsciente no meu quarto.

Senti sua mão me agarrando e seus olhos se virando para mim, com seu corpo nu aberto na altura da barriga até a língua. Embora seus canais respiratórios estivessem expostos, eu ouvi muito bem sua voz. Ou melhor, aquela voz.

“Eu disse que você será minha.”

Aqueles olhos brancos inchados de sangue estavam de volta para me atormentar. Enfinquei o bisturi em sua mão, duas, três, quatro vezes. Os corpos etiquetados começaram a se levantar, quase instantaneamente. Eles olharam direto para mim. E todos falaram na mesma voz, como se fossem várias bocas para produzir um som.

“Não tem como fugir, minha Anelise.”

Minha Anelise. Meus músculos amoleceram e eu estava sentindo minha alma se esquivar para fora de meu corpo. Eu estava muito tonta. Tentei novamente me soltar da mulher, mas esta segurou em minha camisa. Não pensei duas vezes, e cortei a manga fora. Aquele monte de gente morta estava andando nus pela sala com um único propósito, o de me amedrontar. Eu sentia minhas lágrimas caindo, minha franja ainda mais bagunçada que o normal, meu cabelo colado no rosto, de tanto suor. Eu ouvia baques e mais baques, de algo batendo contra alguma coisa de ferro. Não, contra uma porta de ferro. Não. Contra o lado de dentro das gavetas da geladeira de corpos.

Corri, o quanto eu pude. A porta dos fundos estava trancada, mas, eu pensei, não existiam grades por aqui. Lembro de ter me arrebentado no vidro da janela, caindo em solo úmido. Tinha medo de tudo em minha volta, ainda mais agora, que estava em solo sagrado. Eram quase quatro da manhã, eu presumia.

Bem, se a hora mais escura é aquela antes de amanhecer, segundo o conceito figurativo desta frase, antes de melhoras, as coisas pioras, então, na minha vida, eu poderia, depois de tudo isso, ganhar na loteria, trazer meu filho de volta e viver em paz com meu marido e minha mãe, por toda a eternidade. Por que isso estava ficando cada vez pior. Já estava na hora de algo começar a melhorar na minha vida.

Eu vi a sombra de Ian correndo. Estava indo em direção ao seu próprio túmulo. Eu conhecia o caminho muito bem. Eu olhava para os lados e via, cada vez mais vultos, sombras brilhando fracamente em contraste com o frio mármore das lápides. Eu lembrei de minha mãe agora. Estava herdando sua maldição?

Meu filho parou na frente da sepultura com o seu nome e se dissolveu no ar, de pouco em pouco, como se seu corpo mesmo se decompusesse por inteiro em poucos segundos, bem na minha frente. Ele queria que eu visse algo ali. Talvez o motivo pelo qual nem os médicos deixaram abrir o caixão. Era isso. Ele queria que eu abrisse o caixão, que eu visse em seu próprio corpo minhas respostas.

Olhei em volta, mas não tinha nada para cavar. Saí caçando algo que pudesse ser útil, e voltei com uma estaca de madeira. Mesmo toda suada, com rasgos de vidro e toda a roupa de enfermeira aos pedaços, continuei cavando, até que eu cheguei até quase a metade. “Eu vou te buscar, filho. Mamãe tá indo, espera por mim, tá?” Eu ficava repetindo isso, embora fosse mais para me encorajar do que qualquer outra coisa. E eu vi algumas vozes de pessoas se aproximando. Mas essas eram bem vivas. Foi quando, depois de ver de longe o rosto de Jonathan eu corri e entrei neste mausoléu que estou agora, escondida.

Estou desesperada, por mim, pelo meu filho, até pelas vozes que eu passei a ouvir aqui dentro, sussurros indefinidos, mas que são apavorantes. Espero apenas que não seja de nenhum morador que queira cobrar para que possa passar o resto a noite aqui, para que nessa quinta feira eu possa descobrir que tudo isso havia sido mais um sonho louco, e que eu teria minha consulta com Esther novamente.

Estou agora ouvindo passos. Alguém está aqui fora, eu vejo a sombra de seus pés por debaixo da fresta da porta de vidro, mesmo que seja difícil, em meu campo de visão, reconhecer a silhueta. Espero que não ouça a minha respiração, nem o riscar desse meu lápis, que agora treme no papel de modo com qual nem eu mesma entendo muito bem minha própria letra. Meu Deus, ele entrou, ele---

Luke Tantini
Enviado por Luke Tantini em 25/07/2013
Código do texto: T4403710
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