Relatos do Quarto Dia, por Anelise Hansen
É estranho para mim também o fato de estar escrevendo em uma mesa de hospital. E agora eu vejo o quanto eu fui traumatizada por causa de meu próprio filho. Estou com muito medo, medo por ele. Acho que isso que me deixou assim.
Eu acordei, não na casa de minha mãe, onde eu jurava que havia dormido, embora não possuísse recordações de quando me deitei. Era quase dez da manhã quando Jonathan apareceu no pé da nossa cama de casal dizendo o quanto eu havia dormido na noite anterior.
Mas eu não estava na minha casa na noite anterior. Estava com minha mãe.
Perguntei para ele que dia era hoje. Ele me respondeu que era terça. Mentira. Hoje é quarta. Terça foi ontem, eu sabia. E tinha anotado isso no meu diário, que, como prometido por mim mesmo, nunca sairia de dentro do meu bolso. Não sabia o que meu marido queria com essas mentiras, mas não tinha como fugir de nada disso. No que ele estava pensando? Levantei e comecei a argumentar com ele. Comecei a jogar para fora todas as minhas angústias, todos meus demônios em cima dele. Queria respostas, por que ele estava sendo canalha comigo, daquela forma. Ele era tão perfeito, mas como eu mesmo disse antes, perfeito até demais. Ninguém é assim.
Então, em frente à escada, descendo para a sala, eu falei algo que eu não deveria. Eu não queria ter dito aquilo, foi cruel de minha parte. Eu o acusei de matar meu filho. O filho dele. Eu disse que Ian havia ido embora por culpa dele e estava me mostrando o canalha que ele era para que eu fosse também. Ele parou, visivelmente ofendido, me encarando com aqueles olhos úmidos, de uma forma que eu nunca havia visto antes. Por detrás de minha franja descabelada eu consegui ver a dor nele, como se ele tivesse revivido tudo.
Foi quando eu vi, sua cabeça abaixando. E ouvi risos. Não era a voz dele. Não era meu Jonathan, pai o meu filho. Seus olhos se voltaram de novo para mim e como se imitasse os sentimentos de meu marido, ele dizia como ele, coisas que ele diria, mas não com sua voz. Não com sua expressão. Ele perguntava por que eu estava o tratando daquela forma, que ele só queria me ver bem, só queria me fazer feliz.
Mas aqueles olhos que se voltaram para mim... não existia sequer rastro de retina, e estava inchado de sangue, com veias saltadas assustadoramente. Olhei em volta, havia seu reflexo no vidro da janela, no corrimão da escada. Era o maldito. Mais uma vez.
Em meu primeiro ato de desespero, me joguei contra ele. Foi tudo muito rápido, eu o acertei no rosto, marcando sua face com sangue, que escorriam de suas feridas causadas pela minha unha comprida. Ele tentou me segurar, ainda falando como Jonathan. Comecei a me debatem. Não lembro bem da sequencia que se descreveu à seguir, foi tudo muito rápido. Eu caindo da escada, com Jonathan me segurando. Aquela coisa gritando meu nome, como se fosse meu marido, e suas vozes se intercalando, em frases sem sentido algum para mim. “Por que fez isso comigo?... Eu quero você... é você... o gosto por dentro... eu te mato... eu te amo. Anelise.”
Acordei no hospital, tudo muito limpo, um quarto particular, com um homem deitado na cadeira, com uma bolsa de gelo na bochecha, que parecia ter cochilado depois de ficar me observando por horas. Era o Jonathan. Do lado, via uma mesa com um vaso de rosas vermelhas. Consegui ver o cartão. Dizia: ”Para quando você acordar, não esqueça que eu te amo.” Era dele também, eu sabia. As rosas vermelhas eram nosso símbolo. Nossa marca pessoal.
“Enfim, dorminhoca...”
Levei um susto, confesso. Era estranho até que ele levasse pelo lado da brincadeira. Nem eu mesma tinha certeza de quanto tempo eu fiquei dormindo. Decidi arriscar perguntar o que aconteceu, morrendo de medo que a coisa voltasse a me assombrar e usasse Jonathan de novo.
“Você dormiu um dia inteiro. Hoje é quarta, quase oito da manhã, para ser mais específico. Ontem, quando acordou, insistia que era quarta e me mostrou aquele seu caderno antigo de esboços, dizendo que já havia vivido aquele dia. Eu achei estranho, mas você começou a estourar comigo.” O caderno estava em cima do criado mudo. Ele não tinha lido, eu sentia isso. E eu sabia o que eu disse para ele, aquilo que o deixou tão mal que nem agora ele conseguia repetir na minha frente. Acho que ele esperava que eu esquecesse daquilo, mas eu vi seus olhos se umedecerem de leve mais uma vez. “Até que você me deu um tapa que quase arrancou pedaço. E nós dois rolamos escada abaixo, embora você acabou levando toda a carga. Bateu a cabeça muito forte, e eu ainda estava por cima. Então, te trouxe assim mesmo para cá.”
Agora que eu me toquei, ainda estava com minha camisola.
“O que aconteceu esses dias? Desde domingo?” Não queria ter que fazer esse tipo de pergunta. Mas Jonathan era o único aqui que parecia são.
“Domingo, você dormiu, até tarde. Depois, me pediu para comprar um porta retrato novo para aquela nossa foto da sala. Eu não entendia, estava em perfeito estado, mas você insistia em quere trocar. Depois, me dispensou, falando que era para eu ir ao supermercado pegar algumas cosas que você havia esquecido de me pedir. Eu fui, embora fosse tarde da noite, e quando voltei, fomos dormir. Segunda feira, eu saí para trabalhar de manhã. Não ia dar aula à noite, mas quando cheguei, você não estava em casa. Te liguei umas cinco ou seis vezes, na última delas, você atendeu. Estava preocupado, a tempestade estava muito forte, e você não estava bem nos últimos dias, e estava obcecada por esta coisa” e apontou para o caderninho velho. “Você me disse que estava na casa da sua mãe, e que se, quando parasse a chuva, eu pudesse ir te buscar, que estava com muito sono e não estava bem para dirigir. Quando cheguei lá, você estava desmaiada no colo da dona Elizabeth e tive que te carregar até em casa. Foi isso.”
Uma paulada na cabeça foi o que eu parecia sentir agora. Bem, como está aqui relatado, este é mesmo o quarto dia, mas o terceiro nunca foi escrito, por que eu passei inconsciente num quarto de hospital. O que eu achava que havia sido meu domingo, não passava de um sonho maluco. E aquela coisa que eu via em Jonathan... meu filho morto, falando comigo... nada daquilo foi real? Nem o trinco no porta retrato da família? Eu definitivamente estava começando a ficar com medo do que eu estava pensando. É a pior forma de sentir medo, quando você sente de si próprio.
O resto da minha quart feira foi como uma rotina comum de hospital. Visita da minha mãe, visita de enfermeiras vindo tirar meu sangue, fazer exames para ver se não havia me dado algum tipo de traumatismo craniano, quebrado algum osso. Comida sem sal e sem gosto... quase sinto falta de quando eu e Jonathan nos conhecemos, o primeiro jantar que ele tentou preparar sozinho. Mesmo aquele fiasco tinha mais sabor que comida de hospital, embora, eu ainda ache, que o sabor veio mais do momento em que compartilhamos naquela noite.
Vou terminar de escrever por aqui. Provavelmente minha psiquiatra deva estar pensando agora que eu sou louca, depois de ler tudo isso e agora, perceber que foi tudo um sonho de minha cabeça traumatizada. Agora admito que talvez precisa de um tratamento mais específico, e é isso que eu peço agora. Por que ainda estou com medo do que pode estar passando por aqui, principalmente quando eu acordar amanhã, se essa realidade ainda será a mesma.