Relatos do Terceiro Dia, por Anelise Hansen

Acordei hoje com Jonathan. Eu automaticamente havia me lembrado do que eu ouvi pelo telefone, no dia anterior. A voz da minha mãe, me chamando. Dizendo que ele não era mais meu Jonathan. Eu já acordei com esta sensação estranha. Medo.

Ele terminou de se trocar e saiu, perto das nove da manhã. Hoje não iria dar aula à noite. Eu estava aliviada por sua ausência momentânea, porém, amedrontada por estar sozinha. Estavam acontecendo coisas que eu não podia explicar, não conseguia ter certeza mais do que era real para mim, e isso me deixava perdida.

Mais ou menos uma hora da tare, o tempo estava completamente fechado. Ia dar uma chuva pesada demais. Fiquei com um pouco de peso na consciência, talvez meu marido ainda voltasse para casa no meio da água. Fechei então as janelas, deixando a casa em uma anormal escuridão em minha casa tão bem iluminada, e fiquei na sala, encarando mais uma vez, o porta retrato maldito.

Aquele trinco no vidro... no mesmo lugar, colocado da mesma forma que no porta retrato antigo, como se estivesse sido feito de propósito por algo ou alguém. Na verdade, bem no fundo eu tinha uma ideia, mas ainda estava bloqueada demais para admitir isso. Precisava falar com alguém. Alguém que me entendesse, mas que não só pudesse me ouvir, alguém que pudesse me dar alguma resposta, e minha próxima consulta ainda seria depois de amanhã. Minha primeira reação foi ir mais uma vez para a casa de Constance, minha antiga babá. Que se dane a chuva, só queria ouvir alguma palavra, algum conselho de mãe, e ela era a coisa mais próxima que eu tinha de uma mãe.

Tentei ligar primeiro. Ninguém atendeu. De novo. E então, uma voz atendeu com um suave “alô”, que eu conhecia como sendo de outro alguém, ao invés de dona Constance.

Mais uma vez pelo telefone, eu ouvia a voz da dona Elizabeth Cameron. Minha mãe morta. Estava começando tudo de novo e eu não iria querer reviver tudo mais uma vez, como uma constante rotina macabra, na qual eu ainda não consigo ter certeza do que estava acontecendo. Mesmo assim, o choque me impediu de desligar o telefone.

“Minha filha? Anelise, é você? Está tudo bem?”

Enfim, aquilo não parecia um sonho. Olhei para a agenda, não era o nome de Constance que estava escrito, era o nome Elizabeth. Alucinações? Quem sabe? Eu estava feliz apenas por ouvir a voz da minha mãe. Sem dizer uma palavra, sem saber o que estava acontecendo, desliguei o telefone e mesmo morta de medo, peguei o carro e provavelmente levei uma sequencia pesada de multas por excesso de velocidade no caminho.

A chuva de granizo castigava demais, havia levado incontáveis pedradas na cabeça, antes de entrar na casa da minha velhinha, ao sair do conforto do meu carro. Ela estava lá, na minha frente, sorrindo timidamente, tentando manter o semblante ocupado que ela nunca deixara transparecer. Talvez eu agora via minha mãe como se fosse eu mesma. E eu era o moleque travesso que era o Ian.

No portão de casa, arranquei minha blusa de touca e, a abracei, forte. E lá fiquei, chorando, na frente da casa, sem querer entender o que estava acontecendo. Meu sonho havia se realizado. Estava com minha mãe, em seus braços, como quando eu ficava aos meus cinco anos. Eu era uma menina frágil novamente. E não precisava de mais nada na minha vida.

Queria que o mundo terminasse ali para mim. Queria que eu estivesse sido levada, para junto de minha mãe, como ela pediu no telefonema de ontem, que eu estivesse no paraíso. Aquele era meu paraíso pessoal. Os braços de minha mãe.

“Querida, não chore assim. Estou aqui com você, sempre vou estar.”

“Sempre vou estar.”

Essas palavras estavam ecoando em minha cabeça. Minutos, horas, dias, não sei, nem me importo quanto tempo havia se passado, mas eu entrei, finalmente, depois de insistência de sua parte para que eu trocasse as roupas molhadas.

A antiga casa estava exatamente como eu me lembrava dela. Em frente a casa que eu havia estado anteontem, de dona Constance, que estava, misteriosamente, em estado deplorável. Não entendia como esse tipo de coisa era possível. Mas não me importava mais.

Eu nunca fiquei tão feliz em ver minha mãe do meu lado. Eu nunca ri tanto, conversei tanto com ela. Até que eu decidi mostrar as páginas desse caderno que eu agora escrevo como um diário. Eu a pedi para ler. Ela ficou alguns minutos pensativa enquanto eu terminava meu café.

Mãe. A única coisa no mundo que te entende. A única. Ela apenas me abraçou. E começou, chorando a me contar.

“Dona Constance morreu há um ano. Derrame do lado esquerdo do cérebro. Você foi no enterro, e ainda jogou aquela rosa branca, que ela sempre usava para enfeitar teu cabelo longo e preto, quando era criança. Você ficava parecendo uma bonequinha. Você quase esbofeteou o médico quando ele disse que ocorreu um erro durante a cirurgia, devido a um tumor desconhecido na cabeça.”

“No dia em que você viu eu na mesa branca, eu vi um anjo. Era lindo, porém parecia opaco. Ele viu meus sentimentos, ele parecia entender minha alma. Assim que eu olhei em seus olhos, ele se transformou imediatamente. Não era mais um anjo. Era meu demônio pessoal. E ele me mostrou você, depois eu desmaiei. Quando acordei, estava no hospital, com você ao meu lado... o médico me disse que teve que fazer um transplante imediato de rim, pois um estava ausente, o outro, parecia ter sido devorado pela metade. Nem preciso dizer que fiquei apavorada.”

E apenas isso. Me devolveu o caderno do mesmo jeito e pediu para que eu continuasse a escrever. Ela queria que eu ficasse bem. Queria que eu lesse esses escritos algum dia e visse que eu não estava tendo pesadelos acordada, que minha mãe era real, bem mais real que tudo que eu tinha vivido nessas ultimas semanas. Talvez bem mais real que minha vida inteira.

Meu celular tocou. Era Jonathan, me ligando, quase nove horas da noite. Olhei para a janela e vi que a chuva de granizo havia se tornado uma tempestade incrivelmente forte.

“Anelise, onde você está? Estou preocupado.” Eu me senti mal por aquilo. Ele realmente sentia minha ausência, Jonathan sempre foi perfeito para mim. Talvez este fosse o caso, perfeito demais.

“Estou na casa da minha mãe. Vou passar a noite aqui, está muito forte a chuva.” E eu, aqui do outro lado esperando que ele viesse me dizendo algo como “Mas Anelise, sua mãe morreu faz quase um ano.” Ao invés disso, ele respirou profundamente, como se estivesse magoado, ou simplesmente intrigado e respondeu “Tudo bem amor. Vou sentir saudades.”

Esperava qualquer coisa. Qualquer resposta, mas apesar de tudo, esse pareceu um dia que, apesar de igualmente confuso, foi um dos melhores que eu passei na minha vida, à julgar que esses dias passaram a ser os piores. Vou deixar esse diário comigo, em meu bolso, assim que terminar de escrever sobre hoje. E, em um futuro próximo, quando tudo isso estiver resolvido, eu vou ler tudo isso, vou rir dessas alucinações e até, quem sabe, publicar essa história como se fosse um livro, por que não?

Eu só queria ter mais dias como esse. E que o dia que eu visse esse pesadelo de vida como só mais uma história boba de ficção não demorasse a chegar.

Luke Tantini
Enviado por Luke Tantini em 24/07/2013
Reeditado em 24/07/2013
Código do texto: T4402154
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