Relatos do Segundo Dia, por Anelise Hansen
Mais um dia como outro qualquer. Ou seja, cansativo, exaustivo e confuso ao extremo.
Queria poder saber diferenciar sonhos de realidades. Agora, deitada na minha cama em uma noite de segunda feira, relatando como havia sido meu dia, me sinto como se eu precisasse de alguém nesse momento para me abraçar, para ficar cuidando de mim por todos os dias, queria poder voltar a ser criança novamente. Um parte de mim não queria ter crescido, ter feito aquela festa espetacular de quinze anos, na qual eu consegui, finalmente chamar atenção do menino mais bonito da escola, e que nunca dava bola para mim, não queria ter tido aquele menstruação embaraçosa no meio do intervalo do colégio, na qual eu descobri que minha professora de literatura da escola não era tão bruxa assim. Não queria ter ido àquela festa com minhas duas melhores amigas, que me forçaram a ir para me animar, depois de descobrir que o cara perfeito que eu conheci um pouco antes dele entrar para a faculdade não era tão perfeito assim ao ponto de não controlar seu instinto, não queria, naquela festa, ter esbarrado com um motoqueiro carregando duas doses de tequila com sal e limão, e sujado todo o meu vestido. Não queria ter encontrado esse cara dois dias depois, não queria ter trocado telefones, não queria ter me apaixonado por ele. Não queria, por um momento, ter tirado minha blusa aos poucos em frente a uma cama macia forrada de rosas vermelhas, na qual me deitei com ele pela primeira vez, em pleno dia dos namorados, ter aceitado seu pedido de casamento. Queria apenas ser uma criança, de novo aos meus cinco anos de idade, antes das visões da minha mãe, antes de seus supostos contatos, e agora, mais do que nunca, com ela aqui presente, me abraçando. Eu quase consigo sentir seu perfume de cheirinho de bebê quando fecho os olhos. Tenho a impressão de estar sentindo uma lágrima escorrendo agora.
Sim, ela estava definitivamente morta. Eu estava confusa quanto a isso, mas eu me lembro do velório, do enterro. Me lembro de ter gritado com o médico e depois caído aos prantos daqueles ombros largos porém acolhedores como um dia foram os ombros de meu pai, antes de abandonar minha mãe quando eu fiz oito anos. Me lembro do obituário alegando derrame do lado esquerdo do cérebro. Me lembro do caixão descendo e que eu atirei uma rosa branca antes de começarem a cavar, enquanto Ian esperava no carro com dona Constance, ainda vivo.
Hoje foi um dia solitário para mim. Agora, mesmo perto das dez da noite, Jonathan ainda não voltou para casa. Atolado com correções e aulas para dar. Quem diria que um motoqueiro de ar rebelde, um dia viria a ser professor de História? As escolhas da vida nos conduzem a caminhos absurdos. Eu nunca me imaginaria escrevendo um diário, contando de como eu me lembrei que minha mãe estava morta. Isso me parece ridículo, por que até aqui, não sei se tudo que escrevi foi verdade, ou se foram só memórias, ou apenas sonhos. Nem sei se algum dia lembrei do fato do falecimento de Elizabeth, minha mãe, e se afirmei isso para alguém que fosse.
Acordei tarde hoje. Era quase horário de almoço. Estava acabada, em plena segunda feira, quem dirá os próximos dias? Algo me diz que não será uma semana nada boa para mim. Me senti na necessidade de fazer algo, algo útil. Não tenho criatividade para histórias de ação e aventuras, ou até os romances que escrevia baseado nos históricos fatos reais que meu marido me contava vez ou outra. Estava presa dentro de um conto de terror e eu não tinha ideia de como sair. Então, olhei para a mesinha de canto da sala de visitas e me deparei com aquele quadro rachado no vidro, separando Jonathan do resto da minha família, quando ela ainda era uma família feliz. Fiquei segurando aquele quadro por minutos, talvez horas, tanto faz. Fiquei lá, chorando. Só isso. Levantei, tomei um banho e comi o que tinha preparado, embora já estivesse frio devido ao tempo que fiquei no sofá. Peguei a chave do meu carro já que Jonathan havia pego o dele e fui atrás de qualquer loja de presentes, ou algo do gênero. Eu ia comprar um porta retrato novo para aquela foto tão bonita.
Não demorei muito. Era me média umas três e pouco da tarde quando eu cheguei em casa e joguei o antigo porta retrato no lixo e substituí por um tão lindo quanto o anterior, de aspecto mais rústico, porém todo entalhado.
E o dia inteiro se passou assim, comigo relembrando do meu filho. De suas brincadeiras, de todas as vezes que ele pedia para que eu empurrasse a bicicleta para ele andar e quando ele voltava todo ralado depois, sem saber se chorava ou se ria por causa da minha cara de pavor. Eu nunca o preocupei, aparentemente. Minha preocupação o deixava ainda mais confiante para fazer de novo e mostrar para mim que estava errada em me preocupar. Era um moleque de rua, um tipo especial de criança, daquelas que não vem ao mundo para aprender, mas sim para nos ensinar, para nos mostrar como anjos são feitos. Ele era exatamente isso, meu anjinho da guarda particular.
E o telefone tocou. Só para me lembrar de que eu ainda estava nesse pesadelo chamado vida.
“Ele não quer que você saiba de nada. Ele não é mais o Jonathan. Ele pegou seu filho.”
Eu conhecia essa voz. Eu não sabia o que dizer a respeito dessas palavras. A extensão do telefone na cozinha tocou também, direcionando minha atenção. Quando virei mais uma vez, estava branca de medo. Era... essa voz... minha mãe? Não podia ser. Então ouvi um barulho estranho de algo se partindo. Se quebrando. Minha atenção novamente se desviou para o telefone, que corri para atender, deixando aquela voz do outro lado, agora substituída por um chiado. Atendi a extensão, olhando para os lados, procurando o que havia caído, se quebrado, se era uma peça de louça, qualquer coisa.
“Ele não é daqui minha filha. Preciso que você venha até aqui, onde eu estou.”
Eu congelei na hora. Era minha mãe mais uma vez. Mas ela estava morta. Eu havia herdado sua maldição? Mais loucuras na minha cabeça. Como eu iria até ela, se ela estivesse morta? Ela queria que eu morresse, só para falar com ela? Não queria acreditar em nada, queria que fosse só um trote. Ou mais um sonho. Olhei para fora e o sol ia se pondo, escurecendo a casa, que não tinha nenhuma luz artificial ainda acesa. O telefone ficou mudo antes que eu pudesse responder. Coloquei-o no gancho e virei para a sala de visitas novamente.
E foi assim que eu vi, claramente, um vulto encolhido, sentado no mesmo lugar em que eu estava sentada, segurando o quadro novo que eu coloquei. Eu me aproximei. Ele se virou. Era Ian. Estava com olheiras profundas e despenteado, com as roupas em que havia sido enterrado. Não deu pra prestar muita atenção. Em um piscar de olhos, ele desapareceu, deixando para trás o novo porta retrato com o mesmo trinco no vidro, separando Jonathan e a marca do dedinho de criança em cima do rosto do pai. Eu só pude ouvir meu baque surdo no chão do tapete, nem lembro se tive alguma reação na hora. Acho que eu devo ter gritado, provavelmente.
Acordei muito tonta, sem me lembrar de muita coisa. Estava morrendo de medo. Era naquele momento, quase nove da noite. Fui até o armário da cozinha, preparei um sanduíche e tomei um comprimido de dor de cabeça. Não sabia de mais nada, não sabia mais como agir. Então, resolvi agir normalmente, embora estivesse com um pouco de paranoia, observando sempre os lados, como se esperasse encontrar meu filho de novo, como se da próxima vez eu pudesse tocar nele, falar com ele. Eu sentia que minha criança não estava bem, onde quer que esteja. Eu tinha, como mãe, a obrigação de fazer alguma coisa.
Ainda confusa, vim direto para a cama, onde estou até agora. Só espero não ter que sonhar com mais nenhuma morte, ou com ninguém morto esta noite. Sinceramente espero.
E espero também que Deus não queira atender o pedido de minha mãe por mim e me levar para conversar com ela, por toda a eternidade.