Relatos do Primeiro Dia, por Anelise Hansen
E aqui estou eu ainda sem entender o que aconteceu. Eu escrevi meu último relato neste diário logo após ter chegado em casa, e hoje, um dia depois, deitada em minha cama, confusa ao extremo, coloco aqui as anotações de meu primeiro dia.
Foi estranho acordar aquela noite, nos braços de Jonathan, tendo que arrumar uma desculpa para o quadro quebrado e eu inconsciente na sala de visitas. Aquele ultimo fato ocorreu no dia anterior de eu ter a consulta com a doutora Esther e ela me propor o diário. Hoje, por sua vez, foi bem anormal. Fui dormir ontem, logo depois de terminar de escrever. Acordei cedo, mas não encontrei sinal algum de meu marido, que na noite anterior havia se deitado alguns minutos mais cedo, enquanto eu ficava escrevendo. Levantei da cama esperando encontra-lo, fazendo alguma coisa, mas nada. Ele não estava em casa, e por um momento, eu me senti desprotegida.
Da cozinha eu pude ver o quadro partido, em cima da mesa de canto da sala. A marca do dedo infantil não estava lá, apenas havia se partido. Eu lembrei dos sonhos, daquele ato cruel de canibalismo que vi o pai de meu filho fazendo com ele mesmo, aquela cena grotesca, que nenhum ser humano seria capaz de fazer. Depois, essa coisa toda de eu ter alucinações com meu filho. Na verdade, eu queria que fosse alucinações, mas uma parte me mim acreditava que eu poderia falar com ele de novo. E eu queria falar com ele de alguma forma, se eu interpretei certo o que ele estava tentando me dizer, que meu marido tinha alguma coisa a ver com sua morte. Eu não queria acreditar, mas com toda minha capacidade dedutiva, foi a única coisa que eu consegui pensar.
Assim, eu fiz algo que eu mesma me surpreendi. Eu queria respostas, não importando de onde ela viesse. Eu liguei para minha mãe.
Ninguém atendeu das primeiras vezes. Era estranho por que minha mãe nunca saía assim de casa. Deixei para ligar mais tarde. Ou melhor, até ir lá se fosse necessário. Depois das duas da tarde, Jonathan ainda não havia chegado em casa, não havia dado notícias. Não tinha ido para o trabalho, não atendia minhas ligações. Finalmente, parei de tentar em vão algum sinal de vida dele e fui para a cozinha preparar algo para comer, estava faminta. Terminando o almoço, liguei novamente para minha mãe. Ela atendeu prontamente.
Aquele clichê de sempre em uma conversa de telefone, fazia um bom tempo que eu não parava para conversar com ela. Eu amava minha mãe mais do que qualquer coisa no mundo, mas apesar de tudo, ainda sentia um pouco de medo pelo ocorrido naquele dias, anos atrás, quando ela incorporou aquele demônio ou anjo, ou sabe Deus o que, se é que havia realmente sido real. E ainda meus sonhos com aquela noite, expostos juntos com o show e horrores que foi ver meu marido devorando meu filho morto. Apesar disso, eu precisava me abrir com ela. Queria saber o que era a coisa que ela tinha visto ha anos, o que isso tinha a ver com Jonathan e se havia alguma possibilidade de falar com Ian.
Era loucura, eu sabia.
Contei meu sonho para ela. Não pude deixar escapar algumas lágrimas, ainda estava sentida em relação a isso. Sua respiração calma parecia ligeiramente preocupada agora. Como se ela soubesse de alguma coisa. Era o que eu queria que fosse, na verdade, eu queria que ela soubesse de alguma coisa. Houveram alguns ruídos no telefone, com a voz da velha mulher falhando do outro lado da linha. Parecia que o mesmo acontecia com ela, visto que algumas palavras ainda audíveis tinham uma tonalidade de estarem sendo gritadas do outro lado de um estádio de futebol. Enfim, só pude dizer que eu estava indo para a casa dela amanhã bem cedo. E a ligação caiu.
Olhei para o relógio na parede da cozinha. Era quase quatro horas da tarde. Ah, como e queria que nada disso tivesse acontecido, nada de mãe médium, nada de coisas estranhas sondando minha família, nada de Ian adoecendo misteriosamente, nada de fantasmas apontando meu marido do nada. Eu nem ao menos queria acreditar que algo assim pudesse ser possível, embora com certas experiências que me obrigam a criar em mau psicológico o benefício, ou a desgraça que é a dúvida. E no vazio entre os móveis da cozinha, uma sombra a mais me chama atenção, a sombra de uma criança.
Acorda, amor, você dormiu demais.
Não entendo como essas palavras foram pronunciadas. Eu estava no quarto, com uma mesa de café da manhã em meus pés, e Jonathan na beira da cama me chamando, ao mesmo tempo que servia uma xícara de chocolate quente para mim e outra para ele.
Perguntei que horas eram. Duas e meia da tarde. Perguntei se ele havia saído. Ele nunca trabalhava no domingo, mesmo quando atolado de provas para corrigir, ou com teses para apresentar em palestras. Estava me perguntando se havia sonhado, mas era estranho o fato de eu não estar de pijama, mas sim com a roupa que havia posto quando acordei mais cedo aquele dia, se é que realmente havia acordado antes.
Estava delirando?
Inventei qualquer motivo para que ele pudesse sair. Pedi para que fosse comprar para mim algumas coisas no supermercado, nem lembra mais o que. Tudo pretexto para que eu pudesse pegar o carro e correr para a casa da minha mãe.
Era quinze para as quatro da tarde quando cheguei lá. Bati na porta... nada. Bati palmas, procurei por uma campainha, nada. Então, fui até a casa da vizinha da frente, que eu conhecia bem. Seu nome era dona Constance, que por uma parte da minha infância havia sido minha babá. Ela que estava comigo, tomando conta de mim na parte de fora do lugar onde ficava a mesa branca, onde minha mãe teve aquela experiência que me marcou o resto da vida. Tentei umas duas vezes e a velha senhora, mais velha ainda do que eu lembrava que ela era, apareceu, me reconhecendo e abrindo um imenso sorriso maternal.
Me recebeu na velha, porém aconchegante casa. Eu perguntei a ela o que havia acontecido nesses últimos tempos pelo qual eu não morava mais com minha mãe. Ficamos uma hora mais ou menos conversando sobre as coisas de sempre, ela perguntando sobre como eu estava, relembrando todas as minhas travessuras de infância. Nunca imaginaria que pudesse me sentir tão bem tomando café e jogando conversa fora com dona Constance.
Havia sido agradável. Até o momento em que contei que liguei para casa da minha mãe, mesmo que em meu eu interior, eu não tinha plena certeza disso. Era só minha justificativa por ter perguntado a ela sobre minha mãe. Mas havia uma expressão muito mais triste e ao mesmo tempo dura em seus olhos meigos. Estava sem reação diante da resposta. “Sua mãe já morreu faz quase um ano, criança. Não se lembra?”
Não. Definitivamente não, não era possível isso ser verdade. Eu devo ter deixado escapar um ou dois sorrisos de deboche, esperando que minha mãe saísse de trás do sofá com um daqueles bolos maravilhosos e todos os meus amigos de infância gritando um enorme Parabéns. Mas no que eu estava pensando, faltavam meses para o meu aniversário, não havia nada pelo qual seria prazeroso festejar. Ainda mais quando se descobre que sua mãe, sempre firme e forte, que acabou de falar com você pelo telefone, ou pelo menos, até certo ponto isso seja realidade, esteja na verdade morta há tempos. Pensando melhor, não lembrava de nenhum momento, nesse último ano da minha mãe presente na minha vida, mesmo ela sendo tão querida, tão solicitada, e tão prestativa. Não me recordava dela no velório e no enterro do próprio neto. Ela seria a primeira que, provavelmente, tentaria abrir a tampa do caixão lacrado onde estava Ian Hansen, mesmo este estando lacrado por ordens médicas.
Antes que eu pudesse voltar para a realidade e tentar pensar em algo para dizer, ouvi uma buzina de carro na frente da porta. Eu reconhecia essa buzina, era do carro de Jonathan. Meu sangue gelou. O que ele estaria fazendo aqui? Como eu poderia explicar para ele o que eu estava fazendo ali?
O sorriso simpático voltou no rosto de Constance, dizendo que iria pegar a chave e convidar meu marido para o café. Olhei para fora mais uma vez. Jonathan estava saindo do carro. Mas não estava com o carro dele, estava com o meu. Eu não esperava que as buzinas pudessem ter tons semelhantes assim. Então, eu me perguntava, como eu cheguei aqui? A ideia me parecia tão maluca que me fazia rir sozinha, enquanto suava frio, olhando pela janela. Nem ao menos percebi que Jonathan já estava dentro de casa. Acho que ele deve ter se assustado com o susto que eu levei a perceber que ele estava ali.
“Vim te buscar, amor. Já comprei as coisas no mercado. Quer fazer mais alguma coisa inda hoje?”
Tá legal, ele sabia que eu estava aqui, era óbvio. Ele veio me buscar? Pra que? Nem ao menos havia contado para ele. Ficamos mais uma meia hora enrolando, comendo alguns dos deliciosos quitutes da dona Constance e enfim, fomos embora. Ao sentar no banco do carro, antes mesmo de colocarmos o cinto de segurança, encarei Jonathan e finalmente perguntei como ele sabia onde eu estava. Ele pareceu confuso.
“Eu te trouxe aqui. Você disse que estava com saudade da dona Constance, e aproveitou que eu ia ao supermercado e me pediu uma carona.” Era cada vez mais estranho, eu não pedi uma carona. Eu tinha ido ver minha mãe. Ele se manteve calmo quando eu mencionei minha mãe no carro. Tudo bem, ele disse. Eu te levo até lá, ele disse.
Do jeito que eu estava exausta, provavelmente cochilei no meio do caminho. Não que fosse um trajeto muito longo. Enfim, ele me acordou e saiu do carro, abrindo meu lado da porta. Ainda cambaleando, eu olhei em volta. Nós estávamos dentro de um cemitério. Quadra 16. Alguns metros à frente, eu via uma lápide, com os escritos “Elizabeth Cameron”.
Sim. Minha mãe estava realmente morta. E eu, ou estava muito esquecida, ou começando a ficar louca.