Relatos Anteriores ao Primeiro Dia, por Anelise Hansen

Não tenho muita certeza ainda do por que aceitei fazer isso, esse diário. Não sei se por insistência da doutora Esther, não sei se por necessidade minha de ter que me apegar a alguma coisa para livrar todos os meus problemas. Como enfermeira, já tive que entender um pouco de psicologia, então acredito que é uma forma usada pela doutora de me fazer desabafar, sendo que sou mais adepta a palavra escrita do que à falada.

Enfim, comecei com meus registros, sendo minha última opção de aceitar essa realidade maluca que eu nunca acreditei que pudesse acontecer comigo, logo comigo. Saí daquele consultório faz algumas horas, e já comecei a escrever em um caderninho velho, provavelmente se você folear essas páginas ainda pode ser que veja algumas coisas como anotações pessoais, alguns rascunhos ou até esboços de algumas das histórias que eu criava, geralmente com a ajuda de Jonathan. A partir de agora, isso se tornou meu diário.

Tudo bem, essa é uma história que, diferente daquelas que eu invento, não sei por onde começar. É como se eu estivesse dentro de um conto de terror, ou de suspense, ou qualquer outra coisa do gênero.

Acho que tudo começa com o primeiro dia que meu filho adoece. Faz pouco mais de uma semana. Era um dia comum, na qual a única coisa que eu havia estranhado era o fato de Ian ter acordado no horário certo, mas ainda assim, parecia mais cansado do que o normal. Perguntei a ele se estava tudo bem, e ele me respondeu que sim, com um par de olheiras enorme. Insisti um pouco mais e perguntei, no carro, à caminho da escola se ele havia dormido bem.

Silêncio no banco de trás. Repeti a pergunta e nada. Olhei de relance, ele havia caído no sono. Tudo bem, pensei, ainda vai demorar um pouco para chegar na escola. Então, nós chegamos, saí do carro e fui abrir a porta para meu filho, ainda adormecido. Tentei acordá-lo, mas não consegui de primeira. Levantei sua frágil cabeça e então vi uma mancha no couro do banco do carro. Era uma mancha de sangue. O desespero subiu. Comecei a chacoalhar a criança com um desespero que eu nunca me imaginei, gritava seu nome alto, mas não havia ninguém naquele estacionamento para me socorrer. Foi quando aquilo abriu os olhos. Não era meu filho, não sei o que era, mas não era meu filho.

Ian abriu aqueles olhos infantis sem rastro de íris, inteiramente branco, inchados de sangue. Uma voz que não era dele virou-se para mim. “É você que eu quero”. E logo em seguida um baque, uma dor de cabeça muito forte e meu filho, em meus braços, chorando silenciosamente enquanto acordava lentamente, como se despertasse de um pesadelo. Olhei para o banco e nenhuma mancha. Estava me perguntando naquela hora se eu sonhei, se eu estava ficando louca ou algo do tipo. Abracei-o e o carreguei no colo até a porta da sala. Ele não estava bem.

À caminho para o trabalho, meu celular começa a tocar. É da escola. Atendi apreensiva e era a diretora. Meu filho havia caído no meio da aula, sangrando pela boca, e a ambulância já havia sido acionada. Dei meia volta do caminho do trabalho e corri para a escola, conseguindo chegar a tempo. Aquilo poderia ser algum tipo de previsão, uma premonição. Nunca acreditei muito nesse tipo de coisa, mas na minha cabeça era a única explicação lógica que encontrei na hora.

Dois dias inteiros e a única coisa que os médicos podiam falar sobre meu filho era que ele estava em coma por hemorragia grave e algum tipo de fratura no crânio, coisa que também não sabia explicar. Algo estava acabando com meu filho, não era uma simples hemorragia. Alguma doença rara, ou um vírus de hospital, não tenho certeza. Eu só queria saber como fazê-lo ficar bem.

Então, ele se foi.

O enterro foi no mesmo cemitério que meus antigos familiares haviam sido sepultados. Eu não aguentei ficar até o fim. Desmaiei nos braços do meu marido e fiquei por lá. Quando acordei, ele estava me colocando na cama devagar, ele havia me carregado até o quarto em seu colo. Naquela hora eu dormi. E sonhei com minha mãe.

Não lembro com exatidão como havia sido o sonho. Ele foi rápido, e confuso. Mas era com uma das coisas que aconteceu comigo quando eu era criança, talvez um pouco mais nova que o Ian agora.

Nessa época, minha mãe estava intrigada om muitas coisas que aconteciam, ela era só uma dona de casa, mas ela conseguia enxergar coisas que ninguém mais conseguia. Tentava de todas as formas tentar obter alguma resposta, até que em uma secção de mesa branca que disseram que ela possuía dons de um médium. Ela procurou mais evidencias e foi um dia comigo para o mesmo local. Minha mãe pediu para que eu esperasse lá fora, por que não havia ninguém. Eu esperei pacientemente, ate que ouvi um grito. Ela estava então, sentada na mesa, repetindo coisas que eu nunca ouvi antes. Não era nenhum idioma que eu conhecia, se bem que eu ainda era apenas uma criança. Eu a chamei, e ela se virou para mim. Foi a primeira vez que eu vi aqueles olhos inteiramente brancos, inchados de sangue, como aqueles de Ian. E ela repetiu a mesma coisa naquela voz arrastada e ao mesmo tempo doce. “É você que eu quero”.

Eu revivi tudo isso no meu sonho, mas também via mais uma vez meu filho, que apontava para Jonathan, caído em cima daquela mesa. Jonathan? O que ele tinha a ver com isso? Eu estava começando a suar, eu sentia isso. Deve ser aquilo que chamam de sonho lúcido, minha mãe continuava falando naquela língua estranha, que quando criança eu não reconhecia. Eu comecei a gritar, o mais alto que eu conseguia. Eu suava cada vez mais. Tive a impressão de estar gritando na vida real também. Então, algo saiu de dentro da boca da minha mãe, uma espécie de anjo. Ele era lindo, mas era opaco para um ser de luz. Era como um triste fantasma de um anjo, com parte das asas se desfazendo ao vento. Eu imediatamente me acalmei. Aquela coisa emanava uma paz incrível. Até ele olhar para mim. Todos os meus maiores medos se refletiram naquilo, que em menos de segundos se transformava em todos os meus demônios pessoais, como se lesse minha mente com o único proposito de me assustar. Comecei a gritar de novo. A cena toda rodopiava em uma vertigem incessante, eu estava vendo meu filho, diante de mim, igualmente obcecado pelo anjo. Ele chorava sangue, seus olhos ficavam cada vez mais claros, até sua íris desaparecer. Então Jonathan acorda e a criatura desaparece. Meu filho começa a se desfazer na minha frente. A apodrecer, e eu ouço meu marido rindo da situação. Ele se levanta da mesa. E eu, tremendo de medo, me levanto para ver o que ele ia fazer com meu filho apodrecendo na chão. Ele começou a comê-lo, literalmente devorá-lo, como um animal louco para sobreviver de algum forma, e aquilo era sua fonte de sobrevivência. Ele se virou para mim e eu vi aqueles olhos.

Acordei com uma mão no ombro. Era Jonathan. Eu estava muito assustada com aquele pesadelo, só deveria ser isso, porque não há outra explicação. Era quase de manhã e eu vi em Jonathan, pelo menos de relance aqueles mesmos olhos que do sonho. Vi em sua boca rastros de sangue. Até que em um piscar de olhos, aquilo tudo sumiu. Estava morrendo de medo, talvez catatônica por ter aceitado dormir novamente com ele ao meu lado, mesmo depois daquele pesadelo. Tudo bem, meu marido nunca faria algo assim com o filho, mas na minha cabeça, as coisas giravam na velocidade da luz. Passou assim mais uns dois dias, até que eu marquei minha primeira consulta com Esther Maximilian.

Depois da primeira consulta, nada mudou. Aquele pesadelo se repetiu em versões diferentes mais duas ou três vezes, sendo que na última vez eu comecei a acreditar que aquilo seria algum tipo de aviso. Estava entre a segunda e a terceira sessão de terapia, quando eu sonhei pela última vez o mesmo pesadelo.

Eu acordei, menos assustada que da primeira vez, mas igualmente confusa. Olhei no rádio-relógio e vi que eram quase quatro horas da manhã de quarta feira. Jonathan iria acordar para trabalhar em pouco mais de duas horas. Levantei e fui preparar um copo de leite morno para tentar dormir novamente. Era dez para as quatro da manha agora. E eu vi na janela da cozinha a silhueta de um rosto que eu nunca me esqueceria por qualquer momento da minha vida. Depois, ele sumiu. O baque foi tão forte que acabei deixando cair a panela de ferro com leite.

Voltei para pegar algo para limpar a sujeira e na escuridão da sala, acabei deixando cair um retrato de minha família, quando ainda éramos todos felizes, juntos. Mas estava alguma coisa errada, eu não passei por aquele porta retrato, e ele havia caído muito longe de mim. Voltei e o segurei, ainda agachada. Por sorte, só caiu de lado, quebrando apenas um pedaço do vidro. Um que separava a imagem de Jonathan da minha e de Ian. E uma sujeirinha, parecendo com uma digital. Meu sangue gelou. Virei meu corpo para que a luz batesse no porta retrato para que eu visse melhor o que era aquilo.

E eu vi uma silhueta, a mesma que eu vi na janela. Estava me encarando, apontando o dedinho indicador para o lugar onde eu vi a digital, bem em cima do rosto do Jonathan, e apenas aquele pedaço do vidro quebrado.

E eu desmaiei com a imagem do fantasma, ou da alucinação do meu filho presa na minha retina.

Luke Tantini
Enviado por Luke Tantini em 23/07/2013
Código do texto: T4400461
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.