Renascida do Inferno

Este texto é uma continuação. Para ler a primeira parte, entre em: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4285408

Quando despertei, estava na rua e ainda chovia. Tossindo água, um homem moreno e de barba, com boné, sorria.

-Consigui! Salvei a muié!

Me vi cercada de muitos civis, todos me olhando, maravilhados.

-O Dito é um herói!

Notei que tinha sido salva pelo Dito. Levantei, ainda um pouco tonta, dei-lhe um abraço de agradecimento e nem perguntei como eu tinha sido salva.

-Ei, ocê precisa ir pro hospital!

Saí correndo, Na chuvosa São Paulo ao meio-dia, toda molhada e com o sutiã, que era branco, úmido, mostrando tudo que a maioria dos homens quer ver. Eu tinha destino: o Opala. Não importava como eu fosse vista, só precisava sair dali, e muito provavelmente a polícia teria dispersado. É um risco que eu teria de correr. Alguns transeuntes me viram. Eu estava com a perna ferida e sangrando, e cheia de arranhões, mas o calor do momento eliminava a dor; eu devo ter me arranhado por algum objeto ou ao ser puxada através do minúsculo buraco.

Vi o Opala, que por sorte não tinha sido guinchado nem tomado como suspeito. A polícia sabia de mim, da minha aparência e de como eu me vestia, mas não sabia do carro, ainda mais porque muitos dos que me viam já estavam no outro mundo. Cheguei a ele, com muita gente olhando e com o Zakk 12 interditado, entrei, dei a partida, engatei a ré, manobrei o carro e fugi para o outro lado. Muito tonta, a direção foi muito prejudicada e eu quase bati diversas vezes. Uma dor de cabeça monumental e um enjoo começavam a aparecer. Eu acabei vomitando enquanto dirigia, e quase acertei um poste.

Consegui chegar em casa, um pouco mais estável, e consegui chegar ao meu cômodo. Entrei, tranquei a porta e caí no chão, onde eu entrei em colapso.

Despertei apenas as 21h daquele dia, com batidas na porta. Despertei com a tontura normal de uma pessoa sonolenta, que logo foi-se. Peguei um revólver e coloquei na cintura. Perguntei quem era.

-Manu, está tudo bem? – todos os meus sentimentos ruins se foram, atenuados pela doce voz da Carla. Muito confortada, joguei a arma longe, destranquei a porta e abri, deixando-a entrar. Ficou contente em me ver. Não me deixou nem fechar a porta, que já veio para cima de mim, me perguntando coisas. Após um abraço forte, apesar de curto, ela me soltou e, quase chorando, disse:

-Eu achei que você tivesse morrido. Você virou notícia.

-Não, eu quase fui pega pela polícia, mas consegui escapar.

-Conseguiu escapar? Manu, eu passei pelo estacionamento, seu carro está ensanguentado e com algo que se parece com vômito no banco do passageiro! Eu achei que, sei lá, ele tivesse sido guinchado até aqui, mas a última coisa que eu esperava, apesar de ter esperança, era te encontrar aqui viva! – nunca vi Carlinha tão nervosa. Nem eu mesma ficaria tão nervosa com aquela situação. Realmente, os homens que sabem como amar uma mulher têm um tesouro nas mãos: tratei bem Carla desde o começo, criando laços afetivos, que nem com a morte seriam rompidos. Amor este que eu nunca tive com nenhuma pessoa do sexo masculino, tampouco Carla, com seu exímio ex-namorado.

-Eu preciso limpar aquele carro...

-Manu, que corte é esse na sua perna?

-Eu não sei como, eu despertei assim.

-Venha, você precisa se limpar, está imunda! – também nunca pensei que Carla, 5 anos mais nova que eu, cuidaria de mim um dia. Apesar de estar consciente, eu estava enfraquecida e com o físico abalado. Ela mesma trancou a porta do apartamento e me ajudou a ir até o banheiro, onde me despiu, abriu o chuveiro e deu banho em mim, literalmente. Limpou muito bem todas as minhas feridas, me ensaboou e enxaguou. Eu fiz questão de me enxugar, mas ela me vestiu e me levou à minha cama.

-Fique aqui, que eu já venho.

Logo que saiu do meu campo de visão, eu fechei os olhos e adormeci. Acordei com ela sentada ao meu lado na cama.

-Acorda!

-Onde esteve? Que horas são?

-São 2h15, domingo. Agora por favor, me explique o que houve.

-Onde estava?!

-Primeiro eu levei o Opala até a minha casa, onde eu limpei os bancos, para eliminar qualquer prova que tivessem contra você, depois eu voltei aqui e limpei seu apartamento.

O que seria de mim sem ela, leitor? Não interessa se é homem, mulher, velho ou jovem, todos precisam de alguém para apoiar e ser apoiado. É por isso que eu sempre abominei a promiscuidade... De que adianta ter parceiros múltiplos e ficar sozinha quando se precisa de um ombro amigo?

-Diz logo! Eu não te vejo desde quinta à noite, na academia!

-Eu saí mais cedo na sexta... Assim, eu fui para casa e me armei para atacar o Tigre! Fui até o Zakk, e fiz uma limpeza.

-Sua louca, como fez isso? É notícia em todos os jornais!

-O que quer dizer?

-A mídia apareceu ali, mostrando o que foi feito, e tudo foi atribuído a você!

-Por isto eu já esperava!

-Você não entende! Antes, só queriam te prender, mas agora você foi considerada de alta periculosidade! Tornou-se uma inimiga pública, e muita gente sabe da sua aparência! Além do mais, o idiota do pedreiro que te salvou já deu dezenas de entrevistas à tevê.

-“Eu não sabia que era a Morena, a assassina” ele disse! E o pior, foi confirmado que era de fato você, ele viu tua cara, bem como umas quinze pessoas, com a maquiagem meio lavada! Emanuelle, é uma questão de tempo até você ser pega!

-Todos já tinham visto meu rosto! O problema é que os únicos que haviam efetivamente me visto eram os assassinos que eu eliminava. Se você diz que gente inocente me viu...

-Um retrato falado foi feito de você. Ele não está muito fiel, mas se comparar você a ele, percebe-se como é. Você saiu nariguda, com os olhos pretos eu não sei porquê, e com lábios um pouco pequenos. Sua sorte é que, pelo fato de estar meio escuro no momento, o tal de Dito ter pensado que seus olhos eram castanho-escuros. Assim, qualquer um que encontre semelhanças entre você e sua identidade secreta será parado pela cor dos seus olhos.

-Carla, o que eu faço agora então?

-Eu realmente não sei, Manu. Ainda é domingo, você precisa descansar e não perder o trabalho na segunda para não levantar suspeita alguma, e se fazer de inteligente. Dorme agora, e de dia, procure ficar informada sobre o assunto, para manter sua discrição e saber como agir caso alguém venha atrás de você.

-Seria bom se eu trocasse de aparência!

-Sim, mas não agora, senão é mais suspeita para o seu lado.

-Está bem. Por favor, você precisa ir para casa, e tente não ser vista por ninguém. Se eu for pega, que seja só eu.

-Eu também sou uma criminosa, já que eu estou te ajudando, mas eu não vou ser presa. Eu pelo menos espero. Ninguém suspeita do nosso envolvimento.

-Vai, Carlinha, eu me cuido – eu me levantei e fui com ela até a porta. Eu abri, e quando ela saiu, disse:

-Não morra.

Tranquei e voltei à minha cama, onde dormi de novo. Não sei o horário que acordei, só sei que era de dia e isso nem me interessa. Eu estava em todos os noticiários. No fim da tarde, eu fui até uma banca próxima e comprei o jornal, onde uma manchete em letras garrafais, na capa, dizia: “Pedreiro salva Morena, a assassina, sem saber sua identidade”.

No final do dia, meu maior medo era enfrentar o serviço no dia seguinte. Eu não sabia se eles suspeitariam de algo. A poeira até tinha passado, ao menos um pouco. Telefonei para Carla e as coisas pareciam calmas. O noticiário tinha me deixado um pouco em paz.

Acordei por volta das 6h e não consegui voltar a dormir. Comecei a colocar em dia o que eu tinha deixado para depois – terminei de ler o meu livro do Vinícius de Moraes e fiz uma grande arrumação na casa. Encontrei, no fundo de armário, uma caixa cheia de papeis. Acabei vendo-os: eram fotografias, muitas da minha irmã, algumas com minha mãe, vários documentos, minha certidão de nascimento. No meio de tudo aquilo, eu acabei por encontrar uma carta. Uma carta antiga, que eu nunca li. Aquilo acabou por tocar meu coração, me levantei, fui até o sofá e a abri, com cuidado. Datava de 1987. Sou incapaz de contar o que estava escrito, então a colocarei inteira.

Manu,

Estou com saudades. Após a morte de seu pai, eu fiquei sozinha. Malu também faz muita, muita falta. Todos os dias eu choro por causa disso. Você não precisava ter se mudado. A nossa casa está sempre aberta, você sabe disso. Não vou escrever muito, quero que você venha me visitar, então nós conversamos. Um grande beijo,

Mamãe

Que patético. Agora eu lembro porque eu não li a carta quando recebi: vi que no remetente estava escrito Sofia Fonicelli, recusei-me a abrir. Joguei em qualquer lugar.

Após ter lido, lágrimas escorreram pelos meus olhos. Eu não sabia que meu pai tinha morrido. Minha mãe o maltratava muito, e agora ela estava completamente sozinha, bem como eu. Ao menos eu tinha uma companheira; minha mãe, vaidosa como ela, deve provavelmente ter se envolvido com o primeiro encanador que foi na sua casa para fazer um conserto. Aquele estereótipo de loira aguada, olhos verdes, sorriso de dentes amarelos, mas atraente, que fuma feito uma condenada, pernas sempre à mostra. Ela era uma coroa-vadia. Nunca foi fiel ao meu pai, e é por isso que meu pai é apenas de consideração. Eu não sou realmente filha dele, eu sei disto. Não era nada parecida com ele, ao contrário de Malu e, ainda por cima, em um dia de discussão, quando eu saí de casa definitivamente, ela me chamou de bastarda: era o que eu precisava para confirmar minha hipótese. Nem ela mesma sabe quem é o meu pai. Ninguém sabe.

***

Segunda feira, cheguei ao serviço. Muito apreensiva, desci do carro e fui andando calmamente. Na portaria, nada, na recepção, nada, na academia em si, nada. Ninguém suspeitava de nada, e isso era extremamente reconfortante. O dia passou calmo, até o seu fim. Carla não apareceu, eu já sabia disso, afinal, eu mesma disse para mantermos uma certa distância. Tomei banho no vestiário, me arrumei e voltei para o carro, como uma trabalhadora qualquer. Foi quando eu tive o azar de esbarrar com o insuportável João Marcos.

-Oi, gata – já foi chegando para cima de mim me dando beijo. Desviei o rosto.

-Ei, o que?

-João, entenda por favor. Eu não quero me envolver com você. Você pediu para que eu fosse clara, e estou sendo. Eu não tenho interesse em uma relação com a sua pessoa.

-Mas... a gente se beijou!

-Eu te beijei. Mas eu julguei que, tendo em vista tudo que você já me fez, merecia um gesto de carinho, eu estava em débito contigo, e agora estamos iguais. Por favor, não me faça mais nada, não espere nada de mim. Eu preciso ir.

-Está bem, Emanuelle.

Quando ele me chamou pelo nome, eu percebi que estava realmente chateado. Ele só havia me chamado pelo nome uma vez: quando nos conhecemos, na academia, há cerca de um ano.

Era uma aula de kickboxing, onde eu estava ensinando técnicas básicas de Taekwondo para os alunos. Era a minha primeira, eu ainda estava pegando o jeito de ensinar. Só tinham mulheres na aula –com exceção do mala sem alça. Este, todo pimpão vindo de outra academia, tinha feito Muay Thai, então manjava um pouco de chute. Eu percebi que ele estava muito bem para que aquela fosse sua primeira aula. Então, eu perguntei:

-Você sabe lutar? – ele, de imediato e com sorriso, respondeu:

-Um pouco.

-Quer me ajudar a mostrar as técnicas para as alunas?

-Claro – começamos. Sem acertar os chutes nem nada, só se esquivando, e as vezes defendendo com o braço. Começou a ficar complicado. Ele estava vindo para cima, e eu fiquei com medo de ser acertada por ele. Num momento de impulso, eu infelizmente meti meu pé na sua bochecha com toda a minha força, nocauteando-o instantaneamente. As outras ficaram impressionadas. Tive de socorrê-lo.

-Você está bem? Ei, rapaz, acorde!

Ele despertou, e não perdeu a oportunidade:

-Que visão linda, eu estou sonhando? – notei que ele seria um chato que ficaria no meu pé. Mas acredito que, a partir do dia que estava te contando, ele não me atrapalharia mais.

No caminho para casa, fui pensando na minha mãe e no que estaria fazendo. Ela era completamente desocupada, e vivia com o dinheiro que meu pai trazia para casa e, enquanto ele trabalhava, ela levava outros homens à residência. Malu me contou até que, uma vez, a viu beijando um desconhecido na cama dos meus pais, onde os dois supostamente se amavam como um casal. Conversa.

Liguei a TV, estava passando um programa sobre seleção natural. Era até interessante. Ouvi alguém bater na porta. Peguei uma faca que estava perto com a mão esquerda e fui abrir. Quando vi, lá estava aquela cinquentona, como sempre, com uma blusa decotada e com as pernas aparecendo.

-Filha!

Veio me abraçar. Instantaneamente, fui para trás. Ela deve ter sacado que eu não queria contato.

-O que você está fazendo aqui?

-Vim apenas te ver! Não posso?

-Não! E vá embora! – eu empurrei a porta para ser batida. De repente, ela segurou e empurrou a porta com tudo, de maneira agressiva. Minha mãe era ainda maior que eu. Meu pai era miúdo, um coitado. Ela tinha cerca de 1,85m. Acho que é por isso que eu sou menor que ela e maior que meu pai. Mas na verdade ele nem meu pai é. Ah, sei lá.

-Me respeite, menina! Eu te criei!

-Quem te dá o direito de invadir o meu apartamento?

-Sou sua mãe, sua bastarda! E eu posso!

Neste momento, ainda com a faca em punho, tive vontade de metê-la no coração daquela desgraçada. Mas eu me controlei. Eu simplesmente disse:

-Você está invadindo a minha casa. Eu vou chamar a polícia.

Na verdade, eu não iria chamar. Polícia, to fora. No entanto, ela, que também tem um pouco de culpa no cartório, ficou apreensiva, e deu um passo para trás. Foi o tempo de empurrar a porta com todas as minhas forças e trancar. Eu tinha medo da minha mãe. Ela teria coragem de me matar, por qualquer motivo que fosse, e eu não conseguiria agredi-la.

Chorei novamente. Aqueles dias estavam péssimos. Parece que uma grande maré de azar caiu sobre mim. Pode ser o carma.

Finalmente na santa paz, tirei a roupa e fui até o quarto, dormir. Deitei-me, puxei o cobertor e olhei para a minha tatuagem, na virilha. Eu tenho, abaixo da linha da roupa íntima, um Olho de Ra, de uma cor extremamente bela, uma mescla de cinza, violeta e azul. Fiz essa tattoo logo após o meu vigésimo assassinato. Ninguém escaparia da minha vista: eu estava de olho em tudo. Eu também tenho, em cima do bumbum, uma tatuagem tribal. Tenho um piercing no umbigo, pequeno, e outro em um local que não cabe ser contado agora. Também, no seio esquerdo, está tatuado “Malú”.

***

Pouco mais de um mês se passou, e eu me sentia como uma pessoa normal. Sem mortes, sem Carla,sem João me atazanando, o que gerava uma certa solidão. Naquelas semanas, eu tive diversos pensamentos suicidas, que eu afogava com muito, muito álcool. Voltei a fumar, e fui acometida por uma crise de abstinência de cocaína. Sim, eu era uma usuária frenética de cocaína. Experimentei pela primeira vez, em uma forte depressão, após ter matado os assassinos da minha irmã. Sentindo-me profundamente culpada, afinal, o primeiro assassinato não pode ser esquecido. Lembro como se fosse ontem.

Já fazia um ano que Malu tinha morrido. Em profunda tristeza, eu já não tinha mais vontade de fazer nada, como já expliquei antes. Em um ataque de raiva e ódio, eu resolvi ir atrás dos assassinos dela. Sem saber por onde começar, simplesmente fiz igual eu via nos filmes policiais: comprei uma arma de um traficante de drogas, a propósito, o mesmo que me ofereceu cocaína posteriormente, e saí nos lugares que minha irmã frequentava. Ela tinha sido morta num barzinho, então foi lá que eu comecei a farejar. Conversando com muitas pessoas, uma delas tinha visto o rosto de um dos criminosos logo após eles terem montado na moto e batido em retirada.

-Era moreno, cerca de 1,75m, um pouco gordo. Tinha piercing nos lábios.

Piercing nos lábios não era todo mundo que tinha, ao menos naquela época. Então, fui atrás de todos os estúdios de tatuagem que fazia colocação de piercing, e adivinhe: justamente no estúdio em que eu havia feito minha tattoo, meses antes, foi onde um sujeito de aparência similar à que eu perguntei havia colocado aquelas argolas na boca. A propósito, leitor, acredito que nunca havia lhe dito, mas eu tenho um piercing no mamilo esquerdo.

-Não tenho certeza, Manu, mas ele tinha dois, um em cada canto da boca. Se bate com a pessoa que está procurando... é da família?

-Se envolveu com minha irmã.

-Deixe-me olhar aqui [procurando o registro de pagamentos]... Sim, aqui está: Matheus Cavalcante. Tenho o endereço dele, ajuda?

-Claro – imediatamente eu fui para casa, abri a lista e procurei o número. O que eu mais achei estranho é que o nome que correspondia àquele número era Anagiolla Martinelli, o que não tinha absolutamente nada a ver. Por via das dúvidas, fui lá checar. Chegando ao local, bati na porta, na maior cara de pau, perguntando pelo assassino. Não perguntei o nome, mas acredito que a própria Anagiolla me atendeu: era uma senhora de 90 anos. Até ficou contente em me ver: talvez ela estivesse sozinha. Eu até lhe faria companhia, se não estivesse na maior pressa da minha vida.

Totalmente inconformada, voltei para casa pensando naquilo. Voltei à lista, e procurei por várias vezes aquele número, e de novo, de novo, e de novo. Era 411. 411. Desisti e continuei com aqueles dígitos na mente. 411. 411 multiplicado por dois, talvez? 411 dividido por dois, ímpar? Não poderia ser. 114? A numeração poderia me enganar. Mas era minha última pista, e eu precisei checar mais uma vez. No dia seguinte, à noite, voltei para aquela rua e procurei pelo tal 114. Bati na porta, uma voz masculina respondeu quem era. É claro que eu não perguntaria por Matheus. Iria dar muito na cara que aquele era seu nome falso, bem como o número. Mas o estúpido gostava de dar dados incorretos mas com relação aos reais. Em dois segundos de reação, essa sequência veio à minha cabeça: Matheus – nome bíblico – outros nomes – Tiago.

Oi, eu sou entregadora de pizza. O nome é Tiago, está correto? – ele abriu na hora. Sei lá, eu tenho alguma sorte maluca, deve ser Deus que olha por mim. Com certeza ele não havia pedido pizza alguma, mas pensou que eu havia me confundido e ganharia uma pizza de graça. Ao abrir, lá estava eu, na mais tenra idade, sem pizza nenhuma. Era ele – piercing, 1,70m, moreno.

-Onde está a pizza? – tirei do bolso o revólver e apontei em sua direção.

-Está bem aqui! – atirei contra seu peito. O calhorda caiu ao chão e nem sentiu dor, por causa do enorme susto. Fechei a porta. Fui até ele, eu tinha acertado o lado direito, precisava dele vivo pra pegar o parceiro e um possível mandante.

-Quem ordenou o crime? Com quem você estava naquela noite? – de maneira muito sofrida, respondeu:

-Cale a boca, cadela!

Foi aí que meu sentimento matador começou. A vontade de apenas punir os assassinos da minha irmã se diluiu num ódio generalizado contra o sexo masculino e principalmente contra os criminosos. Eu não mato mulheres, mesmo que sejam as mais cruéis – simplesmente não tenho coragem. Minha guerra é contra CRIMINOSOS, que grande parte das vezes, estão atacando MULHERES indefesas. Sobra vaga em presídio feminino. Mais espaço pra mim, caso eu seja pega.

-Diga, ou eu perco a paciência – falei, apertando o cão da arma.

-Me mata logo, idiota! Eu não tenho nada a perder. – comecei a pensar. O que fazer para ele falar? Eu era, apesar de alta, magrela. Não tinha forças para meter socos nem chutes suficientemente doloridos naquele cabrão. Foi quando eu tive uma ideia demoníaca e eu executei a tortura mais desumana da minha vida.

Ele não se levantaria. Procurei pela casa um ferro de passar roupas, que por sorte, ele tinha. Liguei na tomada e deixei esquentando. Voltei até ele, tirei meu isqueiro de chama azul do bolso, que produzem chamas poderosas, quase um mini maçarico. Encostei no buraco da bala, e acionei. Ele deu um grito de dor vermelha. Isso acabou por cauterizar a ferida, porque ele estava perdendo muito sangue por ali e provavelmente morreria em decorrência da hemorragia. Naquele ínterim, o ferro já estava aquecido.

-Não... sua maluca, espere, o que está fazendo, pare, fique longe, não, não, não, me mate mas não faça isso, não, ah, aaaaah, AAAAAAAAAAAAAAAAAAH!

Vamos voltar um minuto no tempo. Ainda imóvel mas consciente, tirei sua regata, deixando sua pele de fora. Peguei o ferro, e como se estivesse engomando uma camisa, passei por toda a carne, durante vários minutos. O ferro estava já perdendo temperatura quando parei. Completamente debilitado, ele pediu por clemência. Eu não havia dito para ele falar. Simplesmente me levantei, dentro do seu campo de vista, e liguei o ferro na tomada novamente.

-Não, por favor, eu conto, mas não faça isso, pelo amor de Deus!

-Deus? Por quê você está dizendo este nome? Cale a boca! – dei uma coronhada em seus lábios, quebrando os dentes da frente – O que você acha que Deus pensa sobre você? Acha que ele terá piedade? Não pronuncie mais este nome!

Ele concordou. Sem eu pedir, ele já saiu falando. Contou que seu parceiro se chamava João Pedro, mas conhecido no meio como “Califa”, era um forte vendedor ilegal de remédios.

-E quem foi o traficante que mandou matar?

-Não foi... traficante... foi um... empresário... poderoso...

-O quê? Não foi por dívida de droga?

-O... namorado dela... não deveria ter... morrido... mas ele mandou...

-Quem?

-Horácio... Damião...

Neste momento, eu congelei. Horácio Damião era, na época, um grande empresário, dono de uma rede de postos de gasolina em toda grande São Paulo, que dava dor de cabeça até para grandes vendedores de combustível. Muito poderoso e influente, tinha uma imagem de homem bom e caridoso. Tinha esposa e três filhos.

-Porquê?

-Não sei... ao certo... mas acho... que a menina... tinha descobrido... coisas dele...

-Quem a matou?

-Eu... dei... o tiro... nela... Califa... nele... – eu fiquei com raiva, muita raiva. Tanta raiva que me levantei e fui até o ferro novamente. Voltei na direção do ferido com o objeto em mãos, pelando.

-Não, espera, me mata, isso na...

Meti o ferro na cara dele, fazendo pressão, queimando nariz, boca, olhos, e tudo que estivesse por ali. Ele não podia nem gritar. Pressionei durante uns dez segundos, e quando tirei, ele ainda tentava reagir. Então, erguei o ferro e comecei a bater com toda a violência que eu podia contra a sua cabeça, esmagando-a. Percebi que ele já estava sem vida, e um pouco de sangue havia espirrado em mim. A sensação de matar alguém que você odeia é incomparável: dá uma impressão de força, de poder, gera um prazer imenso. No entanto, após voltar à mim, eu me senti vazia. Não arrependida – mas muito vazia. Apesar de bom, era estranho ver que aquela obra horrorosa era de minha autoria.

Ergui-me, e joguei o ferro no chão. Peguei a camisa dele, recortei com uma tesoura e cobri minhas mãos. Peguei, também, dois litros de álcool que ele tinha no banheiro e joguei por todo o local. Alcancei suas chaves, joguei o fósforo e tudo começou a queimar. Saí, e tranquei a porta, para não causar suspeitas do fogo, ao menos no começo. Também o banhei em combustível, era imprescindível desfigurar o cadáver. Simplesmente fui-me, com toda a naturalidade, sem deixar uma pista sequer. O incêndio, foi, de fato, considerado criminoso, mas encontraram naquela casa resquícios de muitas drogas, e julgaram obra de um dos muitos traficantes em São Paulo. Faltava apenas dois.

Continua.

Alberto Fitzgerald
Enviado por Alberto Fitzgerald em 17/07/2013
Código do texto: T4391170
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