Canal 75

João Márcio sintonizava diferentes canais procurando algo a se assistir. Artista plástico, realmente aprovava os canais de música e os educativos, sobretudo os de arte. Sua TV por satélite tinha mais de 500, de toda sorte de conteúdo. 21h, nenhum filme havia começado ainda, todos pela metade; apenas séries toscas e repetidas, nada que lhe agradou. Justamente num sábado em que ele estava livre e poderia estar assistindo televisão, nada era interessante.

73, canal de esportes. 74, canal de agropecuária. 75. Um canal sem informações na tela e também fora do ar. Trazendo desgosto à transmissão analógica, onde a ausência de sinal era uma tela cheia de chuviscos e cenas hipnotizantes. Uma simples imagem escura envolvia o tecido de plástico do seu aparelho ainda antigo, daqueles que duram, que possuem adaptadores de sinal. Esperto é quem os guardou – não quebram nunca.

Contudo, aquele canal tinha um tom muito especial. Sua transmissão (ou falta dela) vinha acompanhada de um som muito especial, aquele som dos velhos tempos, de filme antigo, do ar passando pelo microfone. Shhh... de maneira suave, agradável, como estar deitado na grama morna dos pampas ao final da tarde, com a brisa doce da primavera batendo levemente nas folhas e revigorando a alma.

-Vou deixar aí mesmo, esse som até que é gostosinho... – pensou. Decidiu, então, fazer o esboço de um quadro. Aquele som incrível fê-lo esboçar uma mulher, beduína, de olhos mais negros um eclipse, ao vento carregado de areia observando alguém à sua espreita.

De repente, começou a ouvir o noticiário. Foi até a sala, e o aparelho estranhamente sintonizava o canal 69, de notícias.

-Cazzo! Quem mudou isso aqui? – voltou ao canal 75. Transcorridos alguns minutos, passou a ouvir música. Tinha passado para o 465, um canal de variedades.

-Essa maldita TV por assinatura deve estar brincando comigo...

Voltando a esboçar seu desenho, fazendo-o ganhar mais traços, ouviu desta vez um breve silvo. Estava entre uma parede e a tela. Esticou-se e viu que nada mudou. Ouviu, então, uma voz dizer meia palavra – nada. Escutou uma nota de um piano, ficou irritadiço. Nada no canal, apenas sua escuridão e tenro barulho. Decidiu então sentar-se no sofá e observar atentamente o canal. Fitou-lhe com os olhos de maneira profunda e atenta.

Uma hora e nada. João começou a ficar intrigado, mas não sairia dali até ver mais uma anomalia. Curioso, não permitia escapar-lhe nada. Com o tempo passando, a pupilas dele começaram a se abrir e sua pálpebras ficando pesadas. Encostou-se no sofá, acomodou-se melhor. Fechou os olhos e adormeceu.

Despertou num susto. Viu-se Num local todo escuro. Via seu próprio corpo com muita nitidez, mas nada além dele. Andou lentamente, deu gritos e percebeu que não havia eco. Percebeu então estar num local completamente vazio. Começou a correr para os lados, correr para frente, tentar voltar para o lugar onde acordou, mas não adiantava – tinha caído num plano infinito de esquecimento e ausência de tudo que existe. Ajoelhou-se no chão e começou a rezar. Ao fim da oração, sentiu o plano debaixo de si se esvair e começar uma queda. Essa caída pareceu infinita. Via apenas um minúsculo ponto cinza logo abaixo, que ia aumentando e assumindo a forma de um quadrado cada vez maior conforme andava. Ainda em queda, muito próximo a esse quadrado, pôde observar que seus ladrilhos eram iguais aos de uma casa que pintou em uma quadro. Bateu o corpo nesse chão, sentindo dor. Sangue começou a sair de sua boca. Levantou-se.

-Por Deus, o que está acontecendo?

Chegou, com muita calma, às bordas da superfície e, com as mãos, notou que não havia nada embaixo. Com medo de outra queda, sentou-se na beirada e pôs-se a pensar. Começou a balançar as pernas. Ouviu um barulho. Atrás dele, tinha uma corda. Pensou isso ser um teste de Deus ou apenas um sonho, e gostaria muito de acabar com ele. Mas a corda, no entanto, balançava uma de suas extremidades e se comportava como uma cobra, pronta para dar o bote. A outra extremidade não era visível, estava abaixo do quadriculado. Essa cobra-corda então fez um barulho típico de mamba negra, e rapidamente enroscou-se na perna direita do homem. Sentiu a corda ficando cada vez mais pesada, até não poder mais evitar, puxando-o para baixo. A outra extremidade estava amarrada em um piano. Caía, numa imensidão sem fim e sem vento, simplesmente caía, cada vez mais rápido. Em um determinado momento, a aceleração constante levara João Márcio a uma velocidade tão intensa que ele mal conseguia mover o corpo.

Parou. Sentiu piso firme mais uma vez, o chão escuro sem fim. Podia ouvir uma música de tonalidade alegre tocada ao piano, um simples e simpático ragtime a uma grande distância.

-João? Você pode me ouvir, João? Você está aí? – uma voz feminina e suprema, que podia ser ouvida em toda parte, mas sem ser muito alta, apenas absoluta e que se fazia presente, perguntava-lhe.

-Quem é você? Onde eu tô? Quero sair daqui, porra!

-João? Diga-me se pode me ouvir, João!

-Sim, eu posso te ouvir! Me ajude por favor!

-Ninguém pode te ajudar, João. Só você pode se ajudar.

-Por favor, isso é um sonho? Me responda pelo amor de Deus!

-Neste momento Deus não pode te ajudar, João. Ninguém pode. Só você mesmo.

-Então me diga o que eu devo fazer para fugir deste inferno!

-Você deve se livrar de quem te odeia, João. Livre-se de quem não gosta de você.

-Como? Quem é você? Me responda, moça, senhora, quem lá você for!

-Destrua quem está te destruindo, João. Eu nada posso fazer para te ajudar. Eu posso apenas te dizer o que fazer. A decisão é sua.

-Quem é você? É você, mãe?

-Está com saudades de sua mãe, João? Quem você acredita ser? Acha que vou tirá-lo daqui?

-Apareça, eu te imploro!

-Eu sou além de tudo que você pode imaginar, João. Eu sou mais, eu sou o que existe, eu constituo o nada e a partir de mim se faz o tudo. Siga a criação, João. Destrua quem está te destruindo.

-Quem, quem, senhora? Quem me destrói? Como vou destruí-lo? Estou aqui sozinho, isolado, como vou conseguir? Senhora, se materialize!

-Você não me vê, João. Estou em toda parte. Destrua quem te destrói, João. Destrua quem te destrói, João. Destrua quem te destrói, João. Destrua quem te destrói, João. Destrua... – a voz foi ecoando para cada vez mais longe, até desaparecer.

-Senhora? Senhora? Fale comigo! Me diga quem é essa pessoa, senhora!

Apenas o rag tocava. Um rag, bem distante, era tocado em um piano. Chorando, João percebeu que tinha em mãos uma faca, uma grande faca, afiadíssima e brilhante. Completamente louco, soltando espuma pela boca e ódio pelos olhos, foi correndo na direção da música, que ficava cada vez mais alta. Viu um homem vestido de terno e gravata tocando aquela música. Soltou um grito de ataque, de guerra, e o homem percebeu a sua presença. A música parou e o homem saiu correndo, estabelecendo contato visual com João. Era ele próprio. João não teve medo e manteve-se com a mesma fúria.

-João, espere, sou eu! É você! Somos nós, a mesma pessoa! Não me destrua!

A maldita voz voltou:

-Ele é um impostor, João. Mate-o. Mate-o, João, mate-o. Mate!

Correndo de maneira muito rápida, por causa da adrenalina, João alcançou o suposto impostor, dando-lhe uma chave de braço e, com a mão direita, enfiando a faca profundamente no coração do agarrado.

João sentiu um prazer generalizado. Uma sensação de liberdade, algo divino, que apenas Deus poderia conceder ao mais justo e perfeito dos homens.

-Você está livre, João. – exclamou a voz, de maneira envolvente, calma e carinhosa.

Soltou o corpo que agarrava e a faca. Foi arremessado para cima. Viu novamente um ponto, mas desta vez branco, que ia ficando cada vez maior. Era uma luz, lindíssima, quente, que João se aproximava cada vez mais a uma velocidade mais rápida do que nunca, uma luz que lhe tocava o rosto e dizia-lhe palavras lindas, uma luz que esquentava a alma, cada vez envolvendo-lhe mais, cada vez iluminando-lhe mais, até ser ofuscado e mergulhar na imensidão alva do paraíso prometido a todos os homens.

João foi encontrado por sua namorada, no dia seguinte, morto no chão da cozinha, com uma faca cravada no peito e de olhos abertos, tão abertos quanto alguém que estivesse observando o infinito.

Alberto Fitzgerald
Enviado por Alberto Fitzgerald em 11/07/2013
Código do texto: T4382355
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