Filho do Nada

Amanhece em mais uma noite criada. Os astros dançam ao redor desse imenso campo gravitacional. Eis a força, que comprime a matéria, fazendo com que mundos se fragmentem. É possível recolher os destroços desse lixo cósmico, reunindo em uma reciclagem formadora. A turbulência dos primeiros átomos agrupados, compondo um cenário em desenvolvimento. Mais um caos reunido, a ponto de fazer nascer essa vida. Navegantes microscópicos a caminhantes bípedes. O cérebro processa toda essa informação, em uma fração de energia, feito o magnetismo do relâmpago, que possui a força de um impacto. A lua é um farol e o sol uma erupção, que faz derramar toda essa energia que faz emanar das brasas que são os seres vivos. A trovoada estremece os corações, pela sonoridade repentina dessa natureza que pouco conhecemos, mas que muito desejamos conhecer.

Todo dia nascem estrelas, pela constante necessidade de supernovas. A maldição consiste em fazer parte de um fim que se renova. Os olhos perscrutam as escadarias, afim de alcançar o topo. O desespero das mãos tateando paredes sem respostas. A companhia se perde a cada passada, com dedos clicando em dispositivos sonoros. As Campainhas são menos potentes que os trovões, mas não menos aterrorizantes. Cada degrau alcançado cria a dúvida de quantos mais restam até o objetivo. Os andares somem como as companhias. Chegando ao que parecia ser o topo, apenas a escada resta. Os olhos contemplam o que existe abaixo. Ondulações de degraus que vão se perdendo a medida que a vista se afasta. A tontura e o desequilíbrio diante daquele abismo. Mais um passo e cairá. Retornar parece impossível, já que leva a fatalidade da queda. Fica a esperança de que tudo seja um sonho. Se assim é, deve-se precipitar o quanto antes e em vez de sentir o corpo partir-se, ver as amarras da mente desfeitas.

Dois lobos correm em direção ao confronto. Se mordem, arrancando pedaços um do outro. Ambos caem mortalmente feridos. Eis a guerra, com perdas duplas. O cão come o feto deixado próximo a lata de lixo, servindo-se daquela porção generosa. Um corpo sem cabeça se move sobre um balanço, com os braços entrelaçados nas cordas que sustentam o banco de madeira. A cabeça paira sobre a gangorra, indo e vindo, conforme o pêndulo. Um monge da dor se esfola, sentado em um pequeno deserto, cobrindo as partes descarnadas com areia utilizada por gatos doentes. A pestilência ajuda a purificar as chagas dos malditos. Tudo sendo viso por um ser diabólico, que parece flutuar. Seu sorriso é tenebroso, chegando a causar uma impressão de horror eterna na mente dos que contemplam a demoníaca face. As moscas alimentam suas larvas com aquelas tiras de carne expostas.

Abre-se o livro da vida, deixando as páginas serem folheadas. Uma criança corre, com os cabelos embebidos em sangue de inocentes. As armas falam, disparando sua palavra de morte. A vegetação floresce, com galhos medonhos, frutos de carniça e raízes de entranhas. O cavaleiro cavalga sobre os corpos deformados, fazendo poeira com os restos de ossos de exércitos exterminados. O choro e o grito fazem uma serenata. O noivo misantropo, ajeita a aliança no dedo anelar de sua noiva morta, suspendendo os dedos magros e de falanges expostas. Na praça, enforca prisioneiros e expõe os corpos em altares de igrejas vazias. Olhos são comidos por aves de rapina, que escolhe as cabeças largadas no solo, para satisfazer seu apetite por órbitas. Uma perna é disputada por duas hienas, que mordem ao mesmo tempo, uma de cada lado. O rio faz correr porções de gente, que são consumidas por peixes carnívoros. As águas se abrem com as passadas firmes de um desgraçado, que vai de uma margem a outra. Uma vela para cada desgraça, eis o motivo de estar sempre iluminado.

Abre o abdômen e oferece tudo aquilo que transborda de dentro de si. Um pequeno pã se ajoelha e ergue as mãos, amparando as porções do outro. Nasce a oferenda. O sangue irriga a terra de corpos. O auto-antropófago consome suas partes diariamente, roendo os dedos. Com o canivete corta fios das orelhas, mastigando o tecido mais consistente. As agulhas são espalhadas pela pele, fazendo parte de seu organismo, feito um faquir. Perfura o olho com um graveto, estendo-o após ser arrancado, para que um chacal coma. Escuta o som do olho, estourando sobre a pressão daqueles caninos. Agora possui apenas uma visão, feito um ciclope forçado. Cultivando um pequeno camundongo naquela órbita vazia, que vai cotidianamente roendo aquele túnel, até que possa devorar-lhe o cérebro. Os pés caminham sobre os vidros, estalando e cortando, com um rastro rubro. O pesadelo é o sonho dos destemidos.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 23/05/2013
Código do texto: T4305818
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