Homem de Gelo
Seus passos frios, transitam por avenidas desertas, apesar do fluxo constante de pessoas. Cabeças baixas ou mesmo levantadas, fitando adiante, nunca se importando com essas sombras. São quase algumas horas. O relógio da catedral dá o sinal sonoro, com suas badaladas tediosas. Os pombos dormem sobre as árvores. A viatura de polícia, segue com as luzes acesas e a sirene silenciosa, fazendo a ronda diária. O olhar duro do homem sobre o mendigo, que recolhe a mão pedinte, espantado com a expressão horrenda que vislumbrava naqueles olhos noturnos. O frio imperava de forma cruel, fazendo com que alguns se agasalhassem, deixando que outros morressem nas calçadas. Um vento arrepia os pelos, como se anunciasse alguma tragédia. Como se o mundo já não tivesse bastante.
Na casa, abandonada, as roupas deixadas sobre a cama. O leito inerte, ainda retém uma fragrância de corpos de uma noite mal dormida. Apenas um das luzes acesas, como se tivesse sido deixada por esquecimento. Os quadros, tristes, enfeitam paredes sem observadores. A claridade da lua, misturada a dos postes, adentra as poucas vidraças, como penetras tímidos, pela claridade fosca. A carne apodrece sobre a pia, intocada por moscas que já rondam as paredes do lado de fora, em busca daquela putrefação fértil. As louças ensebadas, armazenam uma crosta de gordura. Sobre a mesa do centro, um pedaço de papel amassado, escrito com lápis e caligrafia rude, expressando o que parecia ser alguns versos, que diziam:
“ainda que a vida deixe de existir,
diante do fim da claridade,
que o inferno eu possa pressentir...”
O andarilho, mantendo o rastro de silêncio, atravessa vielas, detendo-se diante de uma pequena criatura. Talvez estivesse perdida. O que uma doce figura como esta, estaria fazendo vagando pelos mistérios da madrugada. Se aproxima, fazendo com que a indefesa, encolhesse os ombros. Suas mãos agarraram o frágil pescoço, estalando os ossos, sufocando. O brilho do olhar sumiu, como um pôr do sol esmagado pelo crepúsculo. Os cabelos sedosos, acariciados, com o corpo ajeitado sobre alguns papelões, em uma espécie de cama improvisada. Um gesto delicado, após a violência do assassinato. Que esse anjo possa dormir em paz, já que foi levado aos braços de deus. Acende um cigarro e dá uma longa tragada, prendendo a fumaça por alguns instantes. Passando os dedos pela barba, refletindo por meio minuto e seguindo adiante.
É possível enxergar um par de cavalos cansados, que pastam em um terreno cercado. Um contraste naquela metrópole. Se aproxima e estende a mão a um dos cavalos, que se aproxima sem medo e recebe a carícia do desconhecido. Sentado no bando de uma pequena praça, observa a lua cheia. Alguém se aproxima. Um indivíduo magro e traiçoeiro, que investe contra o outro sentado. Seus trejeitos são de meliante, sacando uma arma de fogo e ameaçando em voz baixa. Antes que desse conta, sua arma foi tomada, mas o gatilho continuo intacto. Recebera uma facada que fez a lâmina entrar por baixo do queixo e sair pela boca, espirrando sangue no agressor, que torceu o objeto, indiferente ao desespero de sua vítima. Esfregara a lâmina no casaco do morto, guardando em seguida em sua cintura. Sentando-se novamente no banco e apagando o cigarro a aceso, no rosto contorcido daquele precoce cadáver.
O bar pode ser um local para todo tipo de visitante. O cliente mudo entra, faz um gesto, aponta uma das opções do cardápio. O atendente pergunta se é só, recebendo um aceno discreto e positivo de cabeça. Além dele, só resta mais um cliente. Atrás do balcão, o dono do estabelecimento e seu ajudante. O calado freguês se ergue, após virar o copo de aguardente de uma só vez. Pergunta ao dono se é casado. O sujeito confuso, diz não transmitir informações pessoais. A pergunta é repetida. O proprietário pede que se retire. O sujeito insiste e pergunta novamente. Antes que o atendente pudesse alcançar o telefone, o gatilho é disparado, fazendo com que receba um tiro na fronte. O outro freguês bêbado, levanta, mas não se move. O homem, com medo, responde que é casado. Recebe um tiro no pescoço, caindo atrás do balcão. O assassino se dirige até o outro cliente, encosta levemente a mão em seu ombro e diz sussurrando em seu ouvido: “um bar sem dono, uma esposa sem marido e um crime sem testemunhas.” Passou pelo homem paralisado de terror e caminhou rumo a saída, ganhando a avenida. Era quase o horário do sol nascer.