Passos do Silêncio
A madrugada adentra as casas, como se fosse um monstro noturno, se infiltrando pelas brechas. Uma canção de brisa, que vibra próxima aos ouvidos cobertos. A matilha, de olhos flamejantes, espreita sob as árvores, devorando tudo, com olhos famintos. Sonhos conturbados fazem os corpos moverem com violência, ao contrário da suavidade do coito antes do sono, com gemidos sussurrados. Os mecanismos são ligados, com as engrenagens rangendo, a ponto de causar dores de cabeça. O corpo responde, com o batimento cardíaco, que faz com que o homem se torne comparável a máquina criada por ele. Homo ex machina. Como ser pensante, acaba divagando em meio a esse turbilhão de ideais que só fazem assombrá-lo, como vermes a roer-lhe os miolos. Um pacto feito de si para consigo, mediante a escravidão de suas ações perante a autoridade de suas fabulações. Acolhendo um casal drogado, que foge da possibilidade de justiça. A mulher, exibe os seios, na tentativa de um apelo, sendo deixada ignorada, feito uma prostituta tratada com indiferença.
Os objetos tremem, como se fossem pressionados por alguma forma espiritual. Vultos negros, feito abutres a espreita de sua refeição decomposta. Tudo se dissolve, já que a noite engole o que há. O silêncio se instaura, apesar dos sons que mantém a tranquilidade. Agora, um par de olhos flutua, feito dois vaga-lumes quase apagados. A fisgada aguda faz com que acorde do sonho para o pesadelo. A faca enterrada, faz o corpo ter um espasmo, para desfalecer em seguida, causando uma impressão de lago no leito. A serra é precisa na decapitação. A cabeça, separada do restante do corpo, é erguida por mãos em luvas e depois ensacada. As avenidas, quase desertas, são povoadas por patrulhas sonolentas e indigentes indiferentes. Portais são transpostos, com o mundo ainda todo a ser percorrido. A vegetação esmagada na trilha que serve de rota de fuga, com a testemunha de um gato preto, que poderia ser de qualquer outra cor, já que a noite engoliria qualquer um desses seres felinos.
Em um quarto, agora sem luvas, com a cabeça sobre o móvel que lhe serve de altar, beija aquela boca morta, com lábios ainda não tão frios. A taça de vinho que restara da noite passada e completada. Pequenos goles e curtos beijos. Penteando os cabelos. Abrindo e fechando aquelas pálpebras inertes. Fitando os olhos apáticos e sombrios. Mais um beijo. A música instrumental de violinos, faz com que se recorde da aurora, que começa a lançar os primeiros raios. Feito um rato, se encolhe nas trevas de sua alcova, bebendo algumas formigas que se afogaram naquele resto de vinho. O sono que vem é tranquilo, durando um dia. Mais um fim de tarde, se esgueirando pelos cômodos escuros, com os vidros das janelas cobertos por papel, o mofo imperando na casa sem luminosidade. As luzes acesas através das chamas das velas, deixadas longe daquelas madeixas cadavéricas. As luvas calçadas, a vestimenta discreta, o caminhar silencioso e mais uma noite faminta.
A última luz é apagada. Todos dormem, desde os mais novos até os mais maduros. A exceção fica reservada ao cão no jardim, que late apenas uma vez. O alarme é um mecanismo, bem como o latido do cão e o coração que bate. Tudo está em silêncio, já que as engrenagens estão sendo manuseadas por uma força discreta. Dois lances de escadas, a porta de um dos quartos. O corpo jovem e frágil, descoberto, parece em paz, pela expressão serena. Uma perturbação inesperada, com perfuração violenta e profunda, fazendo com que os olhos abram rapidamente, fitando o vulto algoz. O corpo, deixado nu, em frente à porta do quarto dos pais. Decapitado. A cabeça, de menor proporção, transportada por um novo trajeto. As autoridades parecem ignorar ou pouco comentar sobre os horrendos acontecimentos. Uma mãe internada em estado de choque, um pai depressivo. Mais uma vez, um beijo. Agora, uma boca pequena, deixada junto de outras quatro. O corte no pé não cicatriza. A internação no hospital público é inevitável. Fala curta e sem visitas. Recomenda-se que ampute o pé. Volta para casa, encontrando aroma desagradável e um processo avançado de decomposição dos seus troféus.O diabetes avança, como o estado de putrefação dos membros inferiores. Mais um pé, amputado. Novas seções de mutilação. O pensamento que lhe absorve em relação a suas Vênus. A infecção hospitalar se instaura. O falecimento é inevitável. Sem que reclame pelo falecido, existe um mandado de inspeção em sua residência, com o horror dos peritos diante das provas encontradas. O corpo, depois da exposição pública, fora enterrado como indigente. Esquecido em túmulo qualquer, sem registro, que viria ser violado por um coveiro, na tentativa de conseguir algum dinheiro extra, vendendo aqueles restos inúteis para um reitor, que necessitava de material de pesquisa. Somente o crânio foi coletado, restando o corpo decapitado, no fundo daquela cova rasa e desprezível.