Goetia
Sentado, próximo a uma claridade, que se fazia de lareira improvisada, não passando de frestas de raios solares, que adentravam o cômodo, cortando as cortinas. Os olhos, vidrados, apontavam aquela direção ainda sombria, atrás das estantes de livros, perscrutando a meticulosa trama que as teias das aranhas insistiam em manifestar. Óculos ajeitados na face suada, com aquele desconforto de vistas ardidas. Folheando algum livro de poesias, com o hábito de tentar acompanhar o ritmo que os versos promovem. Um cruzar de pernas, antes que venha o adormecimento pela má circulação sanguínea. O macarrão, cozinhando sobre o fogo baixo, com aroma de comida pela casa. O abandono dos poemas, em busca de literatura mais antiga. Mãos que encontram o volume envelhecido.
O livro com os diversos sigilos. É possível verificar a forma de chamar cada um daqueles adormecidos. Uma fórmula para cada figura. O bruxo, estuda as maneiras, pendendo o corpo levemente para frente, atento aos pequenos detalhes de tamanha faceta. Mesmo sem a primeira imagem, se deu conta daqueles momentos, onde traçava aquele círculo mágico que fazia nascer aquilo, que para alguns, seria pavoroso monstro. Mas nada que assustasse o destemido ocultista. Trabalhava com afinco, sabendo do perigo em invocar poderes desconhecidos, deixados adormecidos. Abriu o portal, fazendo com que ocorresse a comunicação. A voz que vinha de outra dimensão, lhe transmitia o estremecimento diante dessa tragédia guardada. Ousou ir adiante, resolvendo criar um encontro mais íntimo, algo que o colocasse ainda mais em risco.
Chegado o momento. Apareceu de corpo inteiro. Aquele fantasma que o aterrorizara desde tempos remotos. Não transmitia mais aquela malignidade, era mais patético. A voz, fraca, quase um suspiro. Os olhares se encontraram, mas retribuiu o antes terror, com piedade. Fazendo com que o manto de terror se desintegrasse. Começara a proferir suas palavras mágicas. Dizendo que outrora, fora molestado por esse homem debilitado, quando se encontrava em sua melhor forma, pior para sua integridade física. Quando criança, molestado. Adulto, diante de seu carrasco. Um velho trêmulo, indefeso, de olhos infantis e não mais de carrasco. Ensaiara os passos para executar esse ritual de expulsão, aumentando sua energia para um combate, que imaginara, terrível. Agora, se vê diante de uma figura decadente, a ponto de extinguir-se e marcada pelo desespero de um arrependimento. Um bruxo de grau superior, enfrentando seu demônio mais íntimo.
O aprendizado, terminara. Apertou com delicadeza as mãos da senil criatura, dando-lhe um beijo na fronte e uma leve carícia nos cabelos. Não se comoveu com as lágrimas que viu surgindo daqueles olhos esbranquiçados. Não ocorreu o alívio dos que se vingam, mas a tranqüilidade de não ter de suportar o fardo que o seu antigo agressor, carregava. Desfez o círculo, desvencilhando-se com as últimas palavras mágicas, que são as do perdão. Alcançara o objetivo de seu trabalho mágico, resolvendo sua batalha interna e ritualizando o conflito. O bruxo, descobrira a força da magia em cada ato, em cada gesto, tornando-se um dos mais desenvolvidos iniciados. Transcrevera as informações em seu diário, passo a passo, eliminando as páginas já superadas, seguindo com a força das cinzas, que a memória criteriosamente selecionava. Todos os caminhos são o caminho.