O Quadro

Uma passagem. Apesar de exposta, parecia subterrânea, por ter aquele aspecto obscuro. Poças de água, refletiam meu corpo, com roupa reduzida a trapos. Os pés, descalços, tomados por calos, eram agredidos pelo solo irregular, com fragmentos de pedras, que machucavam as solas. A mão cansada, retirava com um gesto lento, o cabelo crescido que caía sobre a face, ao mesmo tempo, limpando o suor que descia, causando incômodo aos olhos. A boca, com poucos dentes apodrecidos, aproveita a saliva que acumula, tentando amenizar a sede. Nas costas, o código de barras gravado. O estômago doendo, pois a carne de ontem, do cão encontrado morto, não fora suficiente. As unhas negras em mãos encardidas, coçam a pele cheia de feridas. Não sei quando faço aniversário, talvez seja hoje.

Ameaça chover. Trovões e raios que cortam o céu. Nenhum deles me atinge. Só a água que castiga minhas costas, aumentando minha tosse. Escarro sangue há alguns dias. A cerca de arame farpado, parece tomar conta de todo o planeta, estou sempre cercado. não encontro mais ninguém. Talvez todos estejam mortos. Ainda assim, acredito que sou vigiado, por olhos longe do meu alcance. Deliro, imaginando figuras que se movem como fantasmas. Tento agarrá-las, caindo de joelhos. Sinto falta dos livros, agora leio apenas impressões de objetos e natureza. Deixei de perder tempo tentando ler eu mesmo, já que esse corpo é minha prisão neste inferno. A urina sai escura e fétida. Apalpo as paredes, como um cego que faz da arquitetura carcomida, um braile.

Um cheiro de podre invade minhas narinas. Invadindo um cômodo abandonado, encontro o cadáver de uma mulher. Uma senhora, já infestada de moscas. Deito ao seu lado, beijo sua boca de larvas. Aperto-lhe os seios murchos. Acaricio sua coxas, chegando até a calcinha, tocando-lhe os pelos. Sua vagina parece tão delicada. Isso deveria me excitar, mas só faço carícias. Sinto falta de afeto e não de sexo. Seus olhos brancos, são a luz que eu procuro, já que os meus são de um negrume abismal. Carrego-a comigo. Ajeito suas roupas, deito-a sobre os jornais que me servem de roupas de cama. Somos um casal feliz. Companheiros na desgraça. Já me acostumei com seu cheiro pútrido. Ela não me julga, me escuta, mas sinto falta de voz, pois é muda. Observo o crucifixo prateado na correntinha em seu pescoço. Deus não tem nada a ver com tudo isso, queria.

Sou um pintor. Meu quadro continua inacabado. Mantenho-o sobre o cavalete, exposto. As tintas ressecam. As formas misturadas, ainda sem sentido, parecem representar esse horror inimaginável. Todas as articulações doem, cada movimento gera um grande esforço. Não existem fotografias, e a memória é frágil e traiçoeira, criando ficções que tendem a diluir nossos desejos mais íntimos. A música faz falta. Quem precisa de camisa-de-força, quando se habita um corpo que é um fosso. Mais um corte. Marco o corpo, a cada dia, para saber quanto tempo de suplício, estarei suportando. As feridas são minhas marcas íntimas, com um significado que simboliza a angústia. os insetos, parecem ser os únicos a seguirem seu ritmo, indiferentes a meu estado decadente. Por isso os massacro, detesto sua indiferença. Eu sou o inseto, preso em um vidro, a ponto de morrer a míngua, enquanto seus carcereiros, observam o desenrolar de seu sofrimento, dia-a-dia, como um espetáculo previsível e instigante.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 16/12/2012
Código do texto: T4038401
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