Escolhas
Sentado nessa cadeira barulhenta, que range quando movimento, procuro no dicionário roubado, adjetivos mais pitorescos para a poesia que escrevo. O livro, contendo as marcas da rasura, que escondem o nome do antigo proprietário, acaba se tornando enfadonho, largado em cima do móvel. Os pássaros não aram de bicar as telhas de amianto que cobrem a garagem. O céu, nublado a ponto de se tornar escuro, impõe sua presença, obrigando a acender as luzes mais cedo. A mão desliza sobre o lençol desarrumado, tentando apreender os sonhos de uma noite mal dormida, indo mais além, na busca do ato de amor do dia anterior, no desejo de sentir novos desejos. Tudo parece calmo, quando acreditamos na inocência de um silêncio.
A barba coça, o que faz a escova penteá-la, apenas para alívio da coceira dos pelos que crescem e espetam. O guarda-roupa, com uma coleção de trajes negros, espera discretamente, apesar de sua aparência bruta, para ser utilizado. O espelho, sem imagens a ser refletidas, ou antes, sem que possam ver o que ele reflete, continua mudo, parado. O peito nu e as tatuagens à mostra, em frente a porta aberta, observando o solo de cimento e as paredes rachadas. Um bater ritmado no portão de ferro, desperta a atenção do morador, que atende e deixa entrar o visitante. Gestos de cumprimentos e dois copos de conhaque servidos, bebidos sem brinde. Revistas para serem olhadas e não lidas, espalhadas em cima da mesa de centro.
Uma discussão de travara posteriormente. O visitante, indignado, pois soubera que sua esposa se envolvia sexualmente com o morador. Antes de uma exaltação maior, fora acertado com uma punhalada pelas costas, que lhe tirou o ar. Não conseguiu pronunciar “até tu Brutus”, só o corpo pesado que caiu no meio do cômodo espaçoso, formando uma grossa possa de sangue. O assassino, sentado de pernas cruzadas em uma poltrona próxima, lia um romance de Dostoievski, indiferente ao cadáver ali estendido. Mais algumas batidas no portão. Agora, a esposa chegava. Passara pelo corpo do marido, ou talvez fosse melhor dizer ex-marido. Beijando a boca do amante com desejo ardente, com os dois se despindo e fazendo sexo ali mesmo, sujando-se no sangue da vítima, com a mulher sendo penetrada de quatro, com o rosto sobre o corpo do defunto. Absorvendo o gozo que fora jorrado em sua boca, escorrendo por seus lábios e gotejando em teus seios.
Em seguida, ainda nus, resolveram dar cabo do corpo. Com facas de carne, começaram a esquartejar o morto, o sangue se avolumou, o que fez com que utilizassem farta quantidade de panos de chão. Os pedaços foram destrinchados. Deixaram apenas os ossos, a carne fora estocada em potes de plástico na geladeira. Os ossos foram cimentados, compondo o concreto que preenchera uma parte do piso da área de limpeza. No domingo, um almoço fora preparado, diversos convidados, inclusive familiares, que degustaram uma deliciosa carne de panela com batatas. A comida fora muito elogiada, com o desejo de saber onde conseguiram tão saborosa carne. A geladeira do lado de fora, trancada com cadeado, não foi nem sequer cogitada. Uma investigação começara, em busca do desaparecido.
O real assassino, nem sequer foi cogitado pelos investigadores. Era filho da sua cúmplice, quando assassinaram seu padrasto. As reuniões familiares continuaram, com a sombra do desaparecido e a suculenta carne sendo servida. Os dois amantes, agora com a casa somente para eles, se entregavam a orgias diárias, regadas com entorpecentes e algumas vezes, a participação de convidados. A polícia tentara associar a esposa ao crime, mas jamais descobrira algum amante ou motivo que levasse ao ato, percebendo apenas, o quanto era dedicada ao único filho, um jovem de porte atlético e rosto simpático. A vida havia seguido seu rumo, um enterro fictício fora feito em homenagem ao desaparecido, com o casal sempre prestando homenagens ao morto, como parentes dedicados que eram.