Conversa de Eruditos
Dois jovens eruditos, sentados em poltronas confortáveis de uma casa de classe média alta, cruzam as pernas e se olham fixamente, em um duelo de órbitas. O simples balançar de uma perna, ou o desleixo de uma mão que sacode quase involuntariamente, já demonstra astúcia na conversação. Um deles, sustentando no rosto fino, um par de óculos de lentes grossas, enquanto o outro exibia olhos azuis penetrantes. O ambiente, silencioso, abriga o diálogo, que foi meticulosamente marcado para aquela ocasião, com o tempo correndo vagaroso, para ambos, e o céu azul, com nuvens espalhadas. Era possível ver a paisagem, através de imensas janelas, que com as cortinas abertas, deixavam a luz solar penetrar e inundar o ambiente.
Começaram bebericando algumas taças de vinho. Em seguida, uma leve passada de olhos pelos volumes diversos, expostos em prateleiras altas, da biblioteca daquela residência, que era organizada por uma classificação temática e com ordem alfabética, pela referência do nome de cada autor que ali continha. Logo veio o elogio, pela forma de ordenação, que fazia inveja a pessoas relaxadas mais com senso moral de arrumação. O sorriso após o elogio, demonstrava aquela satisfação maligna dos que esperam o óbvio, devido a seu árduo esforço. os dedos tamborilavam sobre o joelho, que marcava a calça de tecido fino. Uma pausa silenciosa de alguns minutos, que pareciam mais horas, por conta da seriedade que ali se instalava.
O primeiro balbucio fora em relação a obra de Albert Camus, que por estar espremida, parecia pular para fora, deixando-se ver pelo ângulo que impusera. Alguma referência historiográfica sobre “A Peste”, relatando com frieza, as passagens consideradas mais graves. O outro interlocutor, apenas fazia breves movimentos com a cabeça, ora consentido, ora negando as impressões, acrescendo suas perspectivas acerca do que chamou “uma leitura mais sóbria”. Em seguida, pedira explicações sobre outro dia, ter visto o outro jovem, sentado em uma das praças públicas, exibindo grossa encadernação de uma obra de Camões. O outro, embaraçado, disse não ter se exibido, mas que lhe agradava aquele ambiente para apreciar letras e moçoilas que transitavam no final da tarde. Ambos deram uma risada silenciosa, aquelas que se mostram apenas os dentes.
A porta se abre, um estranho adentra o recinto. Pedem sua identificação. O sujeito apenas faz referência de ter assassinado os criados. Os olhos do dois conversadores se arregalam em sincronia. A mão do que está próxima mesa, faz um delicado gesto, para tocar o botão de emergência que instalara naquele local. O homem estranho, faz um gesto de negação com o dedo indicador direito, dizendo que já providenciara para desligar os circuitos e que seria inútil gastar a ponta dos dedos. Com rapidez, aplica uma seringa em um dos jovens, dizendo que é uma espécie de anestésico, que o deixará imóvel, o que realmente ocorre. O segundo se levanta e atira-se contra o agressor, recebendo o encontro do cano de uma arma de fogo contra seu rosto, o que o faz não se mover.
O invasor pede que ele retire toda a roupa. O outro, imóvel mas consciente, apenas observa, com seus olhos quase catatônicos. O visitante diz que aprecia a forma atlética do dono da residência, chegando a tocar-lhe os testículos com a ponta da arma. Puxa os livros das prateleiras, deixando-os cair pelo solo, espalhados. Ergue uma edição do Marquês de Sade, pedindo que sua vítima lesse algumas frases impactantes da obra. Logo se irrita, diz que prefere Goethe e que de agora em diante, será seu Mefistófeles. Faz com que o jovem erudito, arraste o corpo da empregada, que estava estendido próximo a biblioteca, despindo-a. Exige que ele penetre aquela mulher morta, ainda que o outro rejeita e não consiga se excitar. Mesmo assim pede que lhe faça oral e aperte aqueles seios pequenos e flácidos. Tudo ao som da leitura do carrasco, que abre uma obra de Bocage e grita versos eróticos. Aproxima uma faca do amigo paralisado e começa a rasgar-lhe o peito, dizendo para que faça um esforço para se excitar, ou terá que recolher as partes daquele patético jovem.
Em um esforço, tremendo, com o esforço da masturbação, consegue erguer o membro, penetrando com fúria a mulher morta, até ejacular. Nesse momento, o intruso corta a garganta do seu amigo, deixando o sangue jorrar pelo peito. O que faz com que o outro, voe em direção ao assassino, sendo alvejado por um tiro em sua perna. O algoz se lamenta, diz que não pretendia feri-lo dessa forma, mas precisava se defender do que chamou, “uma investida bestial”. Acrescentou que a moradia fora bem escolhida, pois, por estar distante de qualquer vizinhança, fazia com que pudesse fazer disparos altos e meticulosamente estudar e conseguir penetrar naquela mansão. Riu e disse o quão patética era a vida daquelas criaturas, enterradas em livros e discutindo sobre assunto que não tratariam nada de interessante a sociedade. Despejando, logo após o breve discurso, um líquido inflamável, ateando fogo nos livros, deixando arder a biblioteca, fazendo referência ao que fizeram com que a de Alexandria.
- Provavelmente deve desejar saber quem eu sou. Pois se nunca sabemos nem mesmo quem nós somos? Tente apenas recordar os rostos de tantos miseráveis que ignorou pelas avenidas. Seus pratos requintados, valem pela degradação dos outros? Deixarei evidências de que foi um crime, para que possam se aterrorizar, outros patéticos como você. Se conseguem dormir em paz, diante da calamidade que promovem, agora terão insônia pelo pavor desse demônio que voz persegue. Espero que sua última leitura tenha sido vantajosa. Eis a grande apoteose, meu caro medíocre.
Apenas o estrondo de um disparo, com o projétil derrubando a vítima, após acertar sua fronte. O corpo, caído, de olhos arregalados, enquanto o lugar queimava, fazendo-lhe uma cremação sem igual, com as chamas sendo alimentadas por Best Sellers. Os bombeiros chegaram apenas, quando as labaredas puderam ser vistas a longa distância, o que equivaleria dizer, que era desnecessário salvar algo. Mas as providências de combate ao fogo, impediram que a queimada se alastrasse por uma mata próxima. Algumas páginas, chamuscadas, resistiram, mantendo intactos, fragmentos das obras consumidas pelo fogo. O tempo se tornou carregado, as nuvens pesadas, as gotas grossas de chuva, desabavam sobre os corpos que eram retirados, carbonizados e cobertos por plástico negro. A água dissolvia as últimas partes restantes daquela bibliografia, como se cada elemento, contribuísse com o processo de destruição.