Aurora

Acordo. Olho pelo vão em que deveria estar uma janela, agora restando apenas a moldura de uma paisagem sem vida. O sol se ergue, apesar de seus raios tímidos, ainda não ultrapassarem as cerradas nuvens. Respiro um pouco mais forte e tusso, me intoxico com o ar podre, repleto de uma fuligem que contamina meus pulmões e faz com que escarre sangue. Vou até a cozinha, com apenas um cano exposto a céu aberto, onde sai uma água suja e salobra, aparo um copo esverdeado e bebo enormes goladas. Abro o móvel roído de cupim, retiro um maço de cigarros de filtro amarelo, acendo. O estalar do fósforo precede a chama que faz a ponta consumir o fumo. Tragadas profundas, que fazem aumentar a tosse. Os olhos vermelhos e as olheiras que cavam a face, sulcada pelas rugas que chegam cada vez em maior quantidade e mais precoces.

Em cima da mesa, me sirvo de um trago do conhaque mais vagabunda. Isso serve de café da manhã. No chão, ao lado do colchão onde durmo, uma edição de “A Morte Feliz” de Albert Camus, que insisto em deixar de ler, fazendo com que siga como livro de cabeceira, embora não tenha uma. As folhas, já amareladas e comidas por traças, abrem sempre uma esperança de recomeço. Utilizo a obra como um reconforto, onde, cada vez que abro uma página qualquer, faço daquela leitura, um oráculo. Meus óculos, com as lentes embaçadas e fracas, me causam dores de cabeça, seguidas de náusea. Agora a pouco, quase coloquei o conhaque para fora, em cima dos meus lençóis puídos.

Escuto um estalido. Chego próximo ao outro cômodo e encontro um rato preso na ratoeira enferrujada. O animal se debate, o que me faz dar-lhe alguns golpes com um pedaço de pau, até que pare de se mexer. Retiro o corpo sem vida, que az escorrer sangue entre meus dedos e mordo, arrancando os pelos a dentadas, já que a muito tempo não possuo talheres. Finalmente chego na carne, provando daquele alimento cru, lambendo os dedos e deixando o couro na janela, para que outros animais, mais desfavorecidos, possam usufruir desses restos. Essa fora, a refeição do dia. Antes ela, do continuar a roer pequenas porções de mim mesmo, ontem já comera uma pequena fatia de meus glúteos, utilizando com sacrifício, um dos últimos pedaços cortantes de madeira. Mais uma dose de conhaque, para retirar qualquer amargor daquela iguaria. A calvície está cada vez mais acentuada, assim como a dentição, que me fizera perder outro dente ao destrinchar o rato, logo, banguela, terei que arrumar outros meios, quem sabe uma nova madeira ou pedra pontuda, voltando ao tempo dos hominídeos.

As casas da vizinhança são apenas estruturas deformadas. Sem moradores, possuindo uma parede ou outra de pé. Algumas mantendo portais que não levam a nada. Não encontro mais tijolos para roer. Os calangos foram extintos. O sol ataca sem tréguas, já que a vegetação é rala, não restando sombra, por minha casa não possuir teto. Me abrigo escorado em paredes, me servido daquela diminuta sombra. Quando chove, aproveito a água ácida e conservo para beber por alguns dias. Embora tenha que dormir em um colchão encharcado, o que aumenta sua quantidade de mofo. No frio, cavo a terra para abrigar o corpo do vento que me castiga. Os ossos doem. Os olhos secam. A urina é escura, as fezes costumam vir acompanhadas de dores abdominais aflitivas e sangue. A eletricidade parece ter sido uma lenda, em que nem tenho mais certeza se um dia existira.

Na falta de outra pessoa, não tenho privilégio do sexo a dois, apenas masturbação, que já não me agrada. A genitália com pústulas, exalando cheiro de carne podre. Não sei porque não me mato. Sou um covarde. Não. Se fosse, não estaria resistindo. Tenho coragem párea sobreviver e covardia para extinguir os sentidos. Acredito que o único bem nessa vida é a dor, por isso insisto em usufruir dela, já que a morte deve cessá-la. Existindo dor além da vida, desejo aproveitar ao máximo a dor vivente, para poder comparar as duas maneiras de aflição. Todos os dias, escrevo na terra, esfolando a ponta dos dedos, ainda que com o tempo, o vento e a chuva, apaguem minha arte primitiva. Na falta de música, eu canto, quase grito. Hoje a tosse não me deixa gritar, pois vem seguida de expectorações de sangue.

Abro mais uma vez o livro de Camus, pois quando o desespero aumenta, vem o desejo de profetizar. As primeiras palavras que os olhos encontram, dizem: “A cabeça do morto banhada em sangue tinha caído para o lado da ferida e imobilizara-se.”. Converso comigo mesmo, ainda que falte espelho. Me xingo, me humilho e me vanglorio. Algumas vezes começo a rir, e é nesses momentos que mais me angustio. Dói o estômago, aftas alastram-se pela boca, até respirar dói. Coisa rara, uma mosca grudada na terra. Pronto, essa será minha modesta sobremesa. Acredito nunca ter tido passado, parece que tenho vagas memórias, que não passam de sonhos. O calor me castiga, começo a ter alucinações, enxergando o rato me comer por dentro. Desmaio.

Acordo com os pingos de chuva no rosto, tento me levantar para buscar os recipientes, mesmo sabendo que estão exposto e se encherão de água, mas preciso vigiá-los, para que não emborquem e desperdicem a água dos céus. Mas estou sem forças, inclino a cabeça na poça que se forma próxima ao rosto, e começo a lamber a água, feito um cão na sarjeta. A tosse volta, o sangue escorre pela poça, absorvo tudo junto. Posso ter perdido o último cigarro com essa enxurrada. A chuva passa, o sol volta, um vapor sobe, sinto formigar o corpo. Desfaleço novamente. Desperto com pontadas n as costas. Abro bem os olhos, enxergando um abutre que me bica ferozmente. Meu pé, já escuro e apodrecido, deve ter dado o alarde de carniça. Acredito que agora me mataria, mas aqui não há meios para isso. Outros abutres se juntam, me cercando, formando uma espécie de roda ritual ao redor do meu corpo. Uns investem contra meu pé, que já nem sinto, outros beliscam a cabeça. Tapo os olhos. Não quero que comam meus olhos.

Enxergo alguma coisa. Não parece ser a luz do sol, já que essa não queima. Parece que vejo tudo em câmera lenta. A luz é breve. A escuridão vem rapidamente. Sou tomado pelas trevas. A dor cessa. Nada mais de sons, cheiros, toques, paladares e visões. Um limbo. Tenho alguma consciência do escuro, e nada mais. Nada mais resta, apenas esse túnel sem fim. Esse abismo me engoliu. Não sei porque, ainda penso, já que tudo indica que não mais existo. Pensar é um martírio, só quero que as ideias cessem. O que sou, onde estou, porque estou, nada disso me interessa. Preciso parar de pensar, pois a angústia é essa. Aqui não me machuco, a dor se ausentou, alguma coisa fala, feito um eco que repete sem exaurir. Porque não me matei quando tive chance? Continuo só falando comigo mesmo. Será que um cão quando morre, continua a escutar o eco do seu latido? Não. Nós que somos os animais miseráveis, aqueles que raciocinam, eis a nossa desgraça.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 28/10/2012
Código do texto: T3956406
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