A Espera
Acordo sem abrir os olhos, com o desejo de permanecer sonhando, já que os campos paradisíacos da imaginação são férteis, pelo menos até o próximo pesadelo. Me incomodam essas formigas malditas, que rastejam com sua textura que me causa arrepios. Sei que possuem pelos, que causam uma espécie de fricção elétrica ao roçar os pelos da minha barba, que cresce mais a cada dia, sem que eu possa apará-las. Minhas mãos presas, impedem que eu leve a lâmina ao rosto ornamentado por tufos. Insetos insistentes, que vagueiam por minha boca, fazendo com que sinta vontade de cuspi-los, outros momentos pretendo engoli-los, já que parece ter amanhecido e necessito do desjejum. Como podem me pedir calma, se o que faço é apenas esperar, como um monge budista, treinando sua paciência, em busca de algum Nirvana.
Creio ter adormecido novamente. Agora são as patinhas presas aos dentes, com a língua imóvel que não retira os fragmentos de pequenos corpos, apodrecendo em minha boca. Desisti de chorar, mas consigo suar, a ponto de ir derretendo, me sentindo liquefazer a cada momento. Ninguém poderá me conter, por mais que tentem fazer de meu corpo, prisioneiro. A falta de livros impede que me engane em relação ao tempo, notando como vagarosa são as horas, sem um folhear de páginas com mistérios a serem desvendados. Arrumaria inclusive algum candeeiro, para orientar a leitura, no fundo obscuro de minha alcova. A roupa só me faz desejar despir-se, incomodando com os líquidos que a ensopam. Esquecido por todos que disseram um dia ter me amado, sei da ausência de cada um deles, fingidos corvos que só sabem rodear.
Reconheço o sono do sino, que imperiosamente faz com que todos que possam ouvir, se rendam a sua revelação sobre as horas. O relógio é uma farsa, já que mostra sempre o horário já passado, onde nos força a especular também sobre o que virá, mantendo-nos suspensos diante dos ponteiros que nos guilhotinam as sensações menos contabilizadas. E esse aroma fétido que me enjoa. Ainda pedem verbas orçamentárias estratosféricas para o tratamento de esgoto. Antes corria feito um leito forte de rio, agora, atolado nesse esgoto movediço. Falta aquele afago, algum sinal de carícia, já que reconheço apenas sapatos brutos a me apalparem com ar superior. Como coça o corpo povoado de vermes, que consomem essa carne pútrida, em um banquete nojento. As moscas adoram deixar sua prole, graças às frestas marcantes desse caixão mal enterrado.
O som que ecoa, são das pazadas de terra sobre a madeira. Convivo com as baratas que transitam como fiéis companheiras. A vegetação se espalha, invade, não respeitando critérios de território. Absorvo essa chuva que inunda-me até os ossos, que são o que mais resiste. Um cão tentara em vão cavar-me a cova, desejando abocanhar alguma suculenta parte de mim, talvez a angústia fosse diluída pela destruição rápida. Prossigo nesse martírio, sem a ressurreição tão exaltada e nenhum consolo de Além, já que vivo essa putrefação como último marco de uma frágil existência. Sem um nome ou mesmo uma lápide, restando aqueles dois pedaços de pau cruzados, como último subterfúgio cristão. Estou me tornando mais oco, pois as larvas me aliviam o fardo da carne. Minha família vive longe de mim. Repleto de seres, sou solitário, porque morremos sempre sozinhos, é nosso real individualismo, estando sós consigo mesmo.
Sigo adiante. Ainda penso. Logo, inexisto. Nós enquanto vivos e eu quando morto. Me despirei dessas formas de se fazer, deixando cada uma das formas criadas, caírem, feito máscaras inúteis, até que no final, venha aquele clarão que é o último suspiro de uma lâmpada que irá se apagar de vez. De que serve essa roupa engomada, que já apodrecida, desgasta, tornando-se farrapo inútil que tende a se esfacelar. Aqui, somos todos indigentes, podres, maltrapilhos, imundos, fétidos, corroídos, miseráveis. Despojados de quase tudo que usufruímos ao longo da vida, salvo os ossos, que se mantém como gravetos, guardados para uma grande pira que poderá ser acendida no final dos tempos, quem sabe. Acredito que seja este o motivo da simbologia óssea ser tão persistente, inclusive em círculos maçons, já que é o que perdura, podendo chamar, porque não, ossos do ofício. A expressão “descanse em paz” é uma afronta, só existe é tormento. Quando ocorre o término total, não haverá mais porque descansar, já que finda-se tudo, e pressupomos o descanso ser algo gozado. O medo passa a ser ignorado, pois acreditamos ter ultrapassado a barreira do temor. Morrer é não sentir mais medo, por termos perdido a vida, que é o bem que se mais teme perder. Assim, conto os seres diminutos que me devoram, para ter minha última medida de horas, contabilizando a partir das porções de carne que se vão. Aproveitando da tumba, até o último desespero.