Prisioneiro

Essas porções de comida, lançadas ao solo, que não geram frutos no piso aquecido. Onde recolho as migalhas disso que se parece com carne, é o que o paladar e o aspecto indicam, com sua cor esbranquiçada, prefiro crer que seja frango. As mãos arrastam os farelos, junto com a poeira, trazendo até a boca, ávida por algo que possa digerir. No momento que cai de joelhos para se alimentar, recebe pelas costas uma estocada, com a dor da lâmina perfurando seu corpo, rasgando e torcendo dentro de si. Feito um Prometheus, está no outro dia apto para a nova punhalada, que parece cirurgicamente desferida, provocando dor, mas nenhum dano que o faça sucumbir. Quantas vezes já desejara ter falecido, mas a vida resiste e insiste em lhe fazer sofrer. O ódio já foi esquecido, já que a dor impõe um sentimento de sobrevivência, pensando consigo, basta sobreviver e me libertar, ou apenas estar livre, com a crença que a morte lhe daria alforria.

Os pés doloridos, parecem pisar sobre espinhos a cada passo, o que faz com que rasteje na maior parte do tempo, esfolando os joelhos castigados. O piso, comido pelo tempo, é áspero, rasgando as camadas da pele, deixando uma trilha de sangue que seca e se torna a única pintura possível daquele cômodo. O gemido patético que escorre em forma de lágrimas raras. Não existindo mais unhas, rói os dedos. As tatuagens são as feridas abertas, que demoram cicatrizar, e quando o fazem, deixam impressas as fases da tortura. Desfalece quando pode, desprendendo-se desse mundo, refugiando-se nesse outro consciente, que abriga o aflito, apesar de até nos sonhos, sentir a tortura, a sombra do carrasco em cada paisagem criada.

Eis o Inferno! Pensa que assume papel de penitente, trancafiado em um Tártaro. A eternidade não existe para seu corpo, mas em alguns momentos acredita que sempre durará o lamento. Antes batia nas paredes, agora lhe falta a força, são os outros que lhe batem, espancando sua carne deformada. Não acredita possuir nome, quanto mais identidade, parece apenas um mote de carne que é socado por uma marreta insaciável. Quebrando os próprios dedos, pois a dor também é seu alívio, antecipando a maldade de seus agressores, deixando a eles apenas migalhas de si. Na memória a fuga dos rostos de quem amava, feito arte de museu, que é vista de longe, sem entender. Qual o motivo dessa selvageria, e que crime horrendo merecia tamanha pena? Já sente os abutres aproximarem, tentando entrar em estado de meditação, conseguindo no máximo um segundo de alívio, com horas de angústia.

Com a falta de livros e o exagero de encarceramento, começa a contabilizar até os pontos da pintura da parede. A mente tenta trabalhar com números, buscar alguma memória de algo lido ou vivido. Deixaram-lhe algumas páginas religiosas, mas já utilizou as possibilidades que aqueles trechos curtos lhe possibilitaram, descrente cada vez mais. Fingindo-se de morto, fora arrancado do estado moribundo a choques elétricos, tendo o corpo suspenso do solo, pelo impacto da descarga. Queimaduras e aroma de pelos queimados. Pele e osso, facilitando os golpes que eram precisos em pontos que causam maior dor, desgastando seu esqueleto, remetendo-o a dores constantes. Aprendera a só viver na dor, a única companhia fiel.

Não se levantando, é arrastado pelos cabelos, soltando tufos e sangrando o couro cabeludo. Divide a água da chuva com os ratos, que se tornaram mais astutos, para não serem devorados pelo prisioneiro, que vez ou outra, sentia necessidade de mudar o cardápio. Suas fezes e urina abrigam o corpo que deita sobre os próprios excrementos. Um momento de distração dos guardas, o revólver roubado, o cano posto na boca, o gatilho apertado, a espera do estrondo e o esfacelamento do crânio, jogando na parede vestígios de massa encefálica. Nada ocorreu, a arma vazia de projéteis, a salva de pancadas, que o fizeram expelir sangue pelas narinas, ouvidos, uma porção maior voara pela boca, manchando as botas dos presentes, que limparam os calçados nas vestes maltrapilhas do encarcerado. A respiração se tornou fraco, o coração diminuiu consideravelmente o ritmo, começava a ter sua tranqüilidade. Tentaram ressuscitá-lo em vão, os choques já não surtiam efeito em seu corpo, nem mesmo as pancadas na região torácica já tanto castigada. Apenas restara aprisionado seu corpo, sem vida, inútil ao deleite dos seus agressores.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 07/10/2012
Código do texto: T3920529
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