Pele Que Habito
Contemplo os olhos no espelho. Órbitas que saltam de um poço raso, ou mais fundo do que supusera. A face cobre o crânio que se gaba do cérebro, mas o órgão maior, que engloba essa anatomia, é a pele. Os poros esquecidos, tão pequenos, que chegam a ser ridículos. Lembramos apenas dos folículos quando estão obstruídos, causando protuberância dolorida. Pelos que crescem feito capim, em uma pastagem capilar, que voa pelos ares, feito folhas que a ventania faz flutuar. Sou um ser escondido, pois a máscara envolve mais que o rosto, tornando-me sujeito roto. Uma persona epidérmica. Nem o sorriso é meu, apenas rugas que vincam essa superfície, que é o mais fundo que consigo penetrar. Raso que não consegue transbordar.
Armado de lâmina afiada, abro valetas nessa pele maldita que cobre minha carne bizarra. Fios descem, seguindo os sulcos. Essa dor não é pela ferida, mas por algo menos visível, mais profundo. Não passo dessa camada, que me torna um fora de mim. Jogado pelas bordas, contido pelo limite que me envolve, me torce, me acolhe. Me enganaram, já que o corpo é pouco. Organismo mutilado, concentrado longe dessa vil aparência, que é demência dos sentidos mais patentes, enquanto o latente é impenetrável. Mãos para o alto, cobrindo os olhos, não por prece, mas pela vista que padece diante da claridade, que assola o deserto pelicular, que floresce em sua elasticidade, esticando até onde possa agüentar.
Não sou serpente, mas me desfaço de pequenas camadas de pele, que desprendem e caem, alimentando larvas de moscas famintas por sobras. Beijo sua boca, que é outra coisa maleável, com forma imprópria, escondendo os músculos que se movimentam no ato, trazendo à tona um paladar de borracha, com sabor de lábios. Quero seu corpo, mas apenas tenho essa pele, que roça na minha, em uma fricção orgiástica. Sei que não é o que aparenta ser, envolta nessa casca mole que articula para o mistério nascer. Bonecos de egos engomados. Seja séria, fechando essa boca de tragédia, que busca engolir-me por etapas, como se eu fosse um hímen rompido, pronto para que alargassem.
Ontem vi meu amigo atropelado, com a exposição deste dentro que a pele enclausura. Esparramando seu conteúdo, desdobrando-se diante do público aflito. De hoje em diante, saio apenas nu. Nunca estivemos despidos, já que a pele desdobra-se para acompanhar cada passo, enrugando-se ao envelhecermos, em um ressentimento de árvore seca, endurecendo a estética, esfacelando com simples manusear. Do pó não passarás. Para amar, é preciso descarnar. A coagulação acontece, como a regeneração, não feito a de uma lagartixa, algo mais comedido. Uma capa que é mortalha a prender-se nos ossos, como parasita desesperado. Suando por ela, chorando escorro nela. O tato é o grande êxtase, já que vive embriagado por essa magia imediata. Suas linhas labirínticas fazem do envolto, uma cabala.
Seguro o braço e puxo, repuxo. Pressionando até causar hematomas. Tecido maldito que me faz respirar, mesmo com a sensação de vias aéreas obstruídas. Cavidades me deixam explorar, como portais. Pela boca a comida entra e desaparece, bem como o dedo no ânus ou o pênis na vagina. Falo que é pele com limitação em explorar, já que está preso ao restante de sua estrutura, não podendo desprender-se e habitar o outro interior. Mas expele sêmen, causando uma alquimia que só máquinas conseguem visualizar. Só contemplaremos, quando nascer, coberto de pele. Ainda que consigamos queimar, resistirá com camadas inimagináveis, já que é derme, epiderme, pele. Sobrepostas ligas que se mesclam, em uma simbiose horrenda.
Parem de olhar minha pele, preciso que me enxerguem. Não quero mais ser visto por essa máscara em que habito. Esqueçam o rosto, ignorem as formas imediatas, afastando o tato desse ímã. O que direi a minha prole, já que lhes transmitirei o legado nefasto? Todo ser pelancudo é mentiroso, já que acredita na imagem que é seu casulo, mas de onde nunca sofrerá metamorfose, ficando restringido ao cárcere de uma vida. Somos homens de pele, não de carne, já que desdobrados, sucumbimos. A morte é a fuga da pele, que é abandonada sobre os ossos, feito tecido sem utilidade, que tende a esfacelar com o tempo. Já me despi das roupas, agora esfolo essa outra roupagem. Todos somos vermelhos, uma irmandade de sangue. A pele me travesti com esses racismos, já que como outras roupas, me faz julgar e ser julgado, conforme aquilo que é visto.
A pele dos bebês é macia e aveludada, porque ainda irá esticar. Precisa acompanhar o desenvolvimento, abrigando os ossos que afrontam esse órgão volátil. Temos a necessidade de romper, por isso nos desvirginamos, engolindo e expelindo coisas, para que nunca as aberturas deixem de ser exploradas. Somos cegos. Hoje me apaixonei por uma pele, já que não era mulher e nem homem, não sei identificar o que seria, por conta da película que envolve e se faz de único parâmetro. Sou uma pele que habita o mundo, caminhando sem identidade, na busca enlouquecida por uma comunicação com um fora ou um dentro, algo que escape dessa prisão, em que habito desde o nascer. Flácido, até a morte evaporar o conteúdo e decompor a casca, que se tornará parasita sem hospedeiro, em uma liberdade funérea, que virá em forma de enterro.