Dois Reinos

Caminhante solitário. Pisando sobre solo duro, que aquece sob a fúria do sol. Atravessando multidões, indiferente a sua presença cotidiana. A audição perdida em meio à sinfonia civilizadora, que enlouquece a cada existência. Envolto na atmosfera da labuta, que aprisiona e domestica. O cansaço do fim de um dia, que agride o corpo e faz com que pouse os pés sobre uma velha poltrona, alargando o corpo no colchão desconfortável, que é sua regalia. Os vizinhos são a extensão de si, em um mundo de comportamento similar, onde as distinções precisam ser estudadas. Poucos livros em uma estante empoeirada, esquecidos diante do compromisso empregatício.

Acorda de um sonho, talvez adentrara agora ao pesadelo. Fitando as paredes de rocha maciça, que se erguem em um salão de proporções monumentais. A canção é tocada por escravas nuas, que desfilavam seus corpos atléticos, com a marca do ferro em brasa que estampa o brasão do reino em suas carnes. Trazendo água de fonte fresca que ocupa o centro do cômodo, limpando as gotas que caem fora da boca de seu amo, com as línguas, ávidas de atenção. Não soubera que era um rei. Os pensamentos sobre aquela vida monótona seria imaginação, ou vivencia nesse instante a ilusão?

Ergue o braço, atraindo a atenção do animal de estimação. Uma opulente hiena, que abandona o corpo de um soldado, vindo deitar-se próximo do afago de seu dono. O teto, decorado com crianças mortas, com os corpos pendurados em ganchos que rasgam a pele, com rostos desesperados, que já haviam perdido a inocência. Na cintura, a espada de lâmina afiada, que ao ser desembainhada, revela um brilho ofuscante. Detendo-se pela aproximação de guardas, que lhe trazem um prisioneiro. Jogando aos seu pés, um sujeito de feições delicadas, que fora aprisionado quando tentava resgatar sua filha, que se tornara escrava.

O soberano, fitando a face sofrida do homem, pede que ele se levante. Os guardas se afastam. Conduz o cativo salão adentro, até um cômodo mais reservado. Uma espécie de masmorra, onde sua filha encontra-se ferida, sendo possuída por toda espécie de homem de baixa estirpe que se encontra nas proximidades. O pai enlouquece, mas os grilhões impedem que se mova. Liberta o homem, trazendo a filha para junto do pai desolado. Alguns homens de sua tropa, cercam a dupla de prisioneiros. Sua ordem é que lutem entre si, pai e filha, até a morte, com a condição de poupar a vida do filho da jovem e do neto do distinto senhor. Recusam a oferta. O menino é trazido, posto junto a hiena que contorna a criança, com olhos malignos de predador. A criança chora e grita. O pai pede que a filha o mate, para a salvação de sua prole, recebendo um golpe certeiro, trazendo as mãos da jovem até seu ventre, perfurando-o com lâmina impiedosa.

A filha, em prantos, fora aprisionada novamente. O rei se pronunciara, dizendo que pedira uma batalha e não um suicídio. Entregando a criança para a hiena faminta, sob os olhos da mãe, que em vão tentava matar-se. A ordem fora de continuarem violando aquela mulher, enquanto seu corpo resistisse. Voltando-se para seu trono, onde armado com uma adaga, fazia sulcos na face de uma das musas que cantavam para seu prazer. Desfigurar rostos delicados era sua arte preferida, dando ares grosseiros nos finos traços. Pedindo que alimentassem a fogueira de sua lareira, com mais bebês arrancados de ventres capturados.

Porque aquela visão de um mundo com máquinas automotoras, homens apressados e sem ânimo, selvageria contida? Aterrorizava-lhe sequer admitir a possibilidade de uma realidade assim. Por isso, plantava-se diante de uma das casadas, enxergando até onde a vista alcançava, orgulhoso de seu império, que se estendia muito além dos binóculos mais potentes. Sua biblioteca era cada vez mais numerosa, com o hábito de leitura nas primeiras horas do dia, após seu desjejum. O Marquês de Sade lhe inspirava, com seus personagens magníficos. Sentia fúria contra romances shakespeareanos, procurando castigar ao máximo os casais enamorados que ousavam afrontar-lhe.

Parou, subitamente. Algo estranho ocorria. Já que parecia pertencer a uma espécie de mundo feudal, mas com memórias de século XXI. A literatura que possuía, não condizia com a época que governava. Deveria pertencer a um mundo intermediário. A face apoiava as mãos duras, estampando na fronte, um ar desconsolado. Abrindo os olhos momentos depois, diante de uma máquina industrial, apertando botões e seguindo o apito que denunciava a hora de intervalo, para que pudesse almoçar. Sentado entre os outros trabalhadores, degustando uma comida de refeitório, com tempero duvidoso, era assaltado por estranhas lembranças, o olhar se endurecia, as mãos apoiando a face, os olhos enxergando iguais e não subordinados. A expressão, tão macabra, que fizera os companheiros próximos, se afastarem, alimentando-se em outra extremidade do pátio. Ali não haviam crianças, apenas mulheres que só exibiam sua diferença de gênero, por conta de uma protuberância no uniforme, na região do busto.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 11/09/2012
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