Anjo
Era madrugada de janelas fechadas e iluminação tímida. N praça deserta, apenas animais noturnos expiavam por entre a folhagem das árvores. Abaixo do palanque abandonado, o indigente dormia o sono da miséria. Ninguém percebera o fenômeno. Um anjo havia aparecido, descendo do céu, feito estrela cadente, que caiu sem estrondo de meteoro, suavizado pelas asas alongadas que ao tocarem o chão, encolheram para dentro do corpo de homem andrógino. Sua nudez foi coberta por roupas retiradas de uma vitrine iluminada. O alarme não soara, apenas os vidros transpostos, sem dificuldade alguma, fazendo com que os modelos dos manequins, ausentassem da exposição habitual lojista.
O terno, bem cortado, de tecido que fazia eriçar os pelos do corpo angelical, davam um ar distinto a figura exótica, que trafegava pelas ruas, sem preocupação. No beco, um sujeito observava o galã, pensando na ingenuidade do andarilho, que perambulava por aqueles guetos. Ao se aproximar, para uma abordagem mais violenta, com intuito de assalto, foi surpreendido por olhos que o fizeram cair de joelhos, abandonando a arma de fogo, que sem um disparo sequer, tombou pelo bueiro, escoada nos esgotos metropolitanos. Nesse pouco tempo de estadia do forasteiro, o sol já despontava, anunciando uma aurora magnífica. Pedestres caminhavam apressados, lojas já suspendiam suas portas. A multidão quase não percebia a figura opulenta.
Em frente a um obelisco, parecia hipnotizado. Abrindo um sorriso, que foi visto por uma senhora que dirigia, causando grave colisão. O corpo da mulher, fora arremessado, quebrando os ossos feito fino cristal. Ainda assim, disseram estar estampado em sua face um sorriso inexpugnável. O anjo, virando-se para um ponto mais afastado do comércio, deparou-se com a oferta de corpos. Moças desfilavam com roupas mínimas, expondo os dotes. Uma delas, conduzira o ser angelical a um quarto de hotel barato. A sujeira imperava, com baratas em fuga por gretas no solo de madeira. Ao abaixar as roupas do seu cliente mudo, deparou-se com um corpo liso, sem genitália, uma espécie de eunuco. Seu grito foi abafado pelo beijo da criatura, que a fez queimar por dentro, até que o coração se tornasse negro. Falecendo como em uma infarto fulminante.
De volta a praça, rodeado de crianças, procurava esquivar-se daquela inocência fingida. As plantas viravam ao seu passar, como girassóis em busca do astro rei. Passos lentos até um balcão de bar, onde sentado, pedira uma bebida. Um trago comedido, deixando metade do líquido, retirando-se sem quitar o débito. O dono do estabelecimento, de feição bonachona, tentou acompanhar o freguês devedor, perdendo-o de vista, como por encanto, já que o passo vagaroso era fácil de alcançar. Com raiva, bebera o resto deixado, sentindo algo lhe invadir, a ponto de regurgitar a própria alma, que abandonara o corpo, pousando sobre o balcão, feito uma neblina espectral. Enquanto o mitológico ser, cruzava uma avenida, com um veículo atravessando-lhe o corpo, feito névoa, deixando os passageiros sugados, como cadáveres mumificados. O automóvel, colidindo contra um poste, deixando um quarteirão sem energia elétrica.
Sentia seu corpo coçar. Mais do que coceira, era um incômodo de algo que desejava se libertar. As asas se debatiam, pelo aprisionamento na gaiola de carne com barras de ossos. Por isso, sentara-se com mão sob o queixo. Muitos pensaram ser um homem a refletir. Todos que dirigiram o pensamento para o homem com feições femininas, tiveram suas memórias apagas. O cogito fora sugado, para que pudesse alimentar a fúria das asas, que se ocupavam com as imagens de lembranças, dando golpes cortantes para que pudesse pulverizar as recordações. Distração que fazia o anjo se reerguer, seguindo adiante. Parando somente diante de um templo. As portas abertas, convidativas, o fizeram adentrar a cúpula. Um sacerdote que rezava diante de um painel, fora gravado na vidraça, com a cena de seu rosto espantado, que seria apreciado pelos fiéis que ali freqüentassem.
Despido, retirava o mártir da crucificação. Ambos nus, tocando as feridas dos cravos e espinhos. A língua provava o sangue, cicatrizando as feridas. Observava o sexo do crucificado, imaginando o porque de não ter um igual no local liso que possuía. Trazendo a mulher de véu que chorava na representação, diante dos pés de seu filho castigado. Sem véu, com o corpo maduro exposto, sentava-se a cadeira, enquanto o crucificado tomava-lhe dos seios, sugando o restante de vida que ainda restava. O anjo rasgava as costas, abrindo as asas, afrontando todas aquelas imagens petrificadas, fazendo com que um fogo invisível consumisse tudo, sem destruir a matéria corpórea, que era uma fina casca. Castrando o crucificado, igualando os sem sexo, no mundo infértil em que está de passagem. Na porta de saída, a esfinge chorava, já que o enigma fora desvendado. As primeiras badaladas dos sinos, anunciavam o fim de uma etapa.