A Ceia

Na mesa — comprida a perder de vista —, sentam-se os membros de uma confraria. A túnica esconde o rosto, que parece uma face negra, sem formas, que absorve porções do que lhe é oferecido. O símbolo no manto, que pende do pescoço, com mãos de dedos finos pousados sobre a toalha. Ao lado, uma figura feminina, com cabelos que caem sobre a bancada, deixando fiapos dentro do prato que se serve. Dedos decorados com anéis de simbologia mística, lábios sedutoramente malignos, sorvendo o líquido contido na colher de prata. Seu olhar se reflete na aquosa comida, fazendo da auto-imagem uma espécie de experiência narcísica, só que menos empolgante, deixando que desvie os olhos para fugir da confrontação imediata. Usando um vestido preto que lhe dá uma proporção retilínea, cobrindo até os pés, o que dá uma impressão de flutuar quando caminha.

O toque da sineta, indicando uma nova experiência degustativa, com o caldeirão de olhos flutuantes, que bóiam na água turva. Conchas sendo mergulhadas para despejar generosas porções nas tigelas. Um dos convidados, desprovido de membros, contorce o tronco para o rosto cair sobre o prato, saciando sua fome de forma grosseira, quase afogando nas porções líquidas, com esforço medonho para reerguer. Um casal percorre o salão, cortando nacos de seus corpos e servindo nos pratos de sobremesa, para que sejam degustados frescos. Caminham nus, expondo suas mutilações, o que faz aumentar o apetite daquela aristocracia. A mulher obesa deixa os seios imensos sobre o local onde depositam os pratos, o que desarruma o quadrante onde se posiciona. As veias ressaltadas dos enormes e flácidos seios, possuem matizes diversos, com auréolas imensas que fazem dos mamilos algo pouco expressivo. Do seu lado, sua criança abre a boca e espera, para provar as iguarias que são separadas na boca da matrona e regurgitadas para a absorção do seu rebento.

Siameses interrompem o banquete para propor um brinde. Erguendo o tronco duplicado, com fala alternada, em uma espécie de adoração ao anfitrião. Todos erguem as taças de ferro, sendo que alguns até derramam o sangue, que parece um vinho raro. Chegam mais dois convidados, um cego, com ares intelectuais, que vai tateando a mobília até chegar ao local onde deve se sentar, sentindo os espinhos atravessarem sua carne, fixando-o no assento. O segundo, um homem magérrimo, de aspecto curvado, que faz gestos comedidos, soltando sons incompreensíveis, armado com lâminas que usa para causar sangrias a si próprio, pincelando o alimento, feito um tempero caseiro. O mordomo não é ligeiro, parecendo desconhecer qualquer sentimento, com expressão fria sob quaisquer circunstâncias. Trazendo consigo, assistentes que usam máscaras de ferro, que lhe cegam os olhos, o que favorece uma arte que desenvolvem para servir com todo cuidado, devido a suas condições precárias de locomoção.

Na cabeceira, o anfitrião observa calado. O sobretudo que abre em um saiote, expondo pernas musculosas. As vestes com pedrarias preciosas de antigas descendências. Um gesto seu e alguém se mata ou é morto, dependendo do ângulo do movimento, a sentença é revelada e executada. Seu olhar duro, faz com que cada um à mesa, abaixe os olhos, jamais aguentando encarar aquela face terrível. Manchas de sangue seco colorem o tecido que lhe cobre o gigantesco corpo. Sua coroa é fabricada com ossos e tecido humano de vítimas sacrificadas em sua homenagem. Fazendo questão de exibir um casal de felinos que o acompanha com respeito, reprimindo sua selvageria e comportando-se feito dóceis gatos, diante da bestialidade do seu mestre. Sua rainha encontra-se na outra extremidade, indiferente aos hóspedes, banhando-se em uma piscina de sangue, sorvendo grandes quantidades em cada mergulho, erguendo-se do líquido espesso, revelando um corpo bem torneado e púrpuro. Os seios rígidos, deixam o sangue pingar, feito um orvalho macabro. Pede novos corpos, que o mordomo prontamente atende, ceifando vidas e depositando cadáveres para o deleite de sua rainha. Em algumas ocasiões pede que entregue pessoas vivas, pois a caçada lhe diverte, além do sangue fresco espirrado ainda em vida. Interrompe seu banho para o brinde, um olhar em direção ao rei, o banquete prossegue e a lua cheia parece também se avermelhar.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 24/08/2012
Código do texto: T3846368
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