Higienização

Olhos grudados nas fretas de madeira apodrecida. Passos pelas ruas desertas, em uma correria de pés descalços, seguidos por pesadas botas que fazem o solo tremer. A movimentação da infantaria blindada que consegue demolir todas as construções de alvenaria que encontra. Uma nuvem de poeira que se levanta e parece pairar abaixo das nuvens, sem que se dissipe. Vozes afastadas que não se pode identificar o que é dito. A porta se abre e surge o sujeito de sobretudo negro, no braço parecia uma suástica bordada, abandonando o quepe sobre a mesa rústica. Apenas um tiro de pistola estourando a cabeça do homem no fundo do cômodo. A família engoliu os gritos, as lágrimas desceram lentamente, presas ao pó do rosto, que dava uma coloração escura, feito uma maquiagem borrada dos personagens daquele espetáculo dramático.

As mulheres, despidas, com códigos expostos nos braços. As cabeças raspadas, assim como as genitálias. É preciso higienizar, foi que o conseguiram entender. As crianças levadas por um carro de janelas embaçadas. O homem fora surrado por soldados do lado de fora do casebre, tendo a cabeça rachada por pancadas de coronhas das metralhadoras. A mulher mais velha, colocada sentada no piano, para que tocasse alguma canção. Lembra-se de uma composição de Mozart, dedilhando com astúcia, tentando entreter os ouvintes. A jovem engraxava os sapatos do oficial, utilizando a língua, se engasgando com a graxa e sufocando, sendo retirada e jogada em um poço, para que se limpasse. O corpo batera nas laterais de pedra do poço artesiano, tombando sem vida no fundo de águas rasas. A pianista recebera um tiro misericordioso na nuca, enquanto tocava. A casa fora incendiada, depois de retirarem o que consideravam de valor monetário. Nem os animais foram poupados.

Estudantes voltavam com seus livros embaixo dos braços. Surpreendidos no caminho para casa, foram revistados, as vestimentas rasgadas, deixando-os nus. O primeiro, amarrado em duas motocicletas, que partiram em sentido contrário, desmembrando o rapaz. A moça grávida, com o ventre aberto por punhal e o feto exposto, após ter a garganta cortada, em uma degola à luz do dia. Um comboio passara próximo ao local, apenas fazendo uma saudação rápida e seguindo adiante. Disparos eram ouvidos a curta distância. Uma multidão seguia pela estrada de terra, magros, famintos e castigados, com rostos sofridos e olhares desesperançosos. A estrela amarela, comum nos uniformes esfarrapados que usavam. Filas que marchavam por longos trajetos, também enfileirados para economizar munição dos atiradores que derrubavam vários com apenas um projétil.

Naquela tarde, um grupo de errantes, conseguira aprisionar o oficial de quepe. Na improvisação, não possuindo armas de ferro, utilizaram madeira explorada nas florestas, retalharam o corpo do prisioneiro, dando porções de sua carne aos cães famintos. Um dos olhos fora vazado por um graveto, o pênis partido ao meio, pendendo dentre as pernas, dois filetes. Empalaram o sujeito, deixando que a madeira fosse rasgando-o por dentro aos poucos, introduzida no ânus e adentro o intestino, até que a morte dolorosa, que durou dias, se anunciasse na ponta surgida da boca do defunto. O ódio ainda fizera com que queimassem o corpo, após dias que os abutres se banquetearam. Um menino olhava a cena, sem remorso. Mais tarde o grupo seria preso, sendo morto em câmaras de gás. Agora a trilha sonora era de Wagner e morte não parecia mais temida, mas sim um consolo diante de uma vida insuportável.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 17/08/2012
Código do texto: T3835740
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