Abre o Livro
Abre o livro. Os olhos que correm pelas páginas, buscando cada letra para formar frases e poder refletir sobre a literatura. Olhando por sobre a capa, investigando as pessoas sentadas em volta. Cada um, uma história. O casal de idosos conversa, sendo que o velho tem semblante duro. A mulher obesa caminha com dificuldade, abrindo espaço entre as cadeiras. No bebedouro a criança é levantada para alcançar o esguicho. A menina, impaciente e curiosa, fazendo perguntas e atirando revistas. Pessoas passam de um lado para o outro, trocam de lugares. Está calor, apesar do recinto, encontrar-se fechado, somente o ventilador gira, fazendo cabelos balançarem.
Em outro sala, imagens católicas contrastam com um cientificismo exaltado. Obras de arte penduradas, demonstram o sofrimento, com lamúrias nos olhos dos representados. O tempo parece ir vagaroso para quem espera, o que faz pensar a respeito da situação dos enclausurados, que só vivem de esperar. Respostas vagas que mal traçadas linhas não conseguem explicar. O sorriso amarelo e bonachão, não passa de um simulacro. Logo chegará a conta das despesas, que são sempre altas. Negocia-se tudo, inclusive a saúde. Pernilongos atrevidos não respeitam fronteiras, picando pernas de todos os estilos, da mulher jovem de belas curvas, da idosa com tosse encatarrada, do homem com trombose. Os insetos ignoram a situação das classes, sua luta é pela espécie, o desejo de fazer sobreviver novas gerações.
Vozes misturadas, parecem compor uma nova confusão auditiva, parecida com do trânsito do lado de fora. Um casal se beija, enquanto outro se afasta, de forma discreta, o olhar da esposa entrega, pois vaga a procura de outros olhares. A luminária pisca, mas a televisão continua ligada, transmitindo algo que faz as pessoas se hipnotizarem. No banheiro, próximo ao balcão de madeira, a placa na porta, indicando que é para ambos os sexos, com bonecos unidos na imagem e separados por um traço, talvez para identificar que entram ambos, desde que separadamente. É quando as batinas brancas voam, fazendo chamada, organizando filas, despertando a atenção do público ouvinte e não muito atento.
Dentro de um cômodo, a jovem é marcada, com vários cortes no antebraço. Um Cristo é posto em frente, como se dissesse que dor, apenas ele sofreu. O livro, agora fechado, revela o título em letras chamativas. Curiosos esticam o olhar, procurando identificar a leitura, embora fiquem presos ao nome. O suor escorre por dentro das roupas, não chegando a pingar, já que o tecido absorve. A noite se faz presente, deixando a luminosidade opaca, fazendo com que alguns já demonstrem cansaço, escorando o braço em laterais de poltronas e fechando as pálpebras em cochilos rápidos. A vida parece seguir o mesmo ritmo há anos, dentro daquela estrutura.
Mais uma vez, abre o livro. Agora, com páginas machadas de sangue e letras embaçadas. A obesa, com a cabeça esmagada. O casal de idosos de gargantas abertas. Nem um sobrevivente. Os que não foram estripados, tiveram suas frontes espancadas. Os trajes brancos adquiriram matiz púrpura. As imagens pareciam agora horrorizadas com o espetáculo. A mulher que procurava outros olhares, agora mantém os olhos abertos, como se não acreditasse. Somente o casal que se beijara, conseguira escapar. Trocando seus carinhos no ponto de ônibus a algumas quadras do local. Autoridades foram acionadas, mas o executor só desejava concluir a sua leitura. No fim da obra, percebendo o quão sem importância é o final, estoura o próprio crânio, entendendo que a obra fora sublime anterior ao desfecho. Na parede, o quadro com imagens de pássaros, com desenhos que fazem parecer uma partitura musical composta de aves. Somente um policial se concentrou na obra de arte. O livro, “Dom Casmurro” de Machado de Assis, foi utilizado com tentativa de justificar o que descreveram como “um ato de loucura”, mais sem sucesso.