O Dêmonio da Cozinha
Janaina acordou atordoada, o calor do verão e sonhos turbulentos dos quais não conseguia lembrar fizeram-na levantar da cama às três da madrugada para ir à cozinha procurar algo para tomar. Era costume, da garota, andar pela casa grande e vazia durante as madrugadas. Nunca tivera um sono tranquilo e seus pais já haviam acostumado com a inquietude da menina e não se importavam mais com barulhos vindos da cozinha durante as noites. Não havia com o que se preocuparem, a região era muito segura, falava-se em dormir com as portas abertas, que nada aconteceria, nunca se ouvira falar de ladrões por ali.
A garota caminhava sonolenta pelo corredor que dava acesso a cozinha, com os olhos cerrados, arrastando as pesadas pantufas de coelhinho cor-de-rosa, mal levantava os pés. Quão grande não foi a surpresa, mesmo que tenha demorado para se dar conta, do que viu à sua frente. Viu-se totalmente acordada ao avistar alguém abrindo a sua geladeira. Esperava que fosse sua mãe, apesar de não reconhecer aquela camisola azul celeste, parou de se aproximar e esperou a porta da geladeira se fechar, quando lentamente aconteceu, quem estava atrás da porta branca olhou-a diretamente nos olhos, como se já soubesse que ela a estava a observar. Era alguém exatamente igual a ela. Um clone de Janaina. Ao mesmo tempo era diferente. Tinha uma expressão faminta, sanguinária, quase diabólica. E ostentava um sorriso no canto da boca, quase que rindo do espanto de sua observadora.
A verdadeira Janaina tentou gritar, usando toda a força de seus pulmões, mas a voz parecia não sair, então desmaiou. A duplicata desapareceu no ar, derrubando uma #jarra de suco de laranja# que tinha nas mãos.
A menina acordou sendo chamada por seu nome, estava em sua cama e tinha seus pais sentados ao lado, sua mãe passava-lhe a mão em seu cabelo vermelho.
- O que aconteceu? – perguntou Janaina.
- Nós que queremos saber, filha. O que aconteceu?
- Eu não sei, eu fui a cozinha e tinha alguém lá. Ai, minha cabeça.
- É impossível Janaina, todas as portas e janelas estão devidamente trancadas, exatamente como deixamos antes de dormir e não há nenhum outro sinal que outra pessoa estivesse aqui.
- Você devia estar sonhando acordada, filha. Nós a encontramos, desmaiada no chão da cozinha, ficamos desesperados pensando que algo tinha acontecido, mas acho que foi só um susto mesmo.
Janaina se sentia fraca, e preferiu não insistir na história de ter visto alguém. Talvez tivesse sonhado mesmo. Sua dúvida desapareceu quando, ao sentir o pulso esquerdo dolorido, constatou que existiam dois pequenos furos roxos. Algo realmente havia acontecido.
Três dias e três noites se passaram desde o acontecido, Janaina não Tinha mais se levantado da cama na madrugada, tinha medo. Realmente não tinha pistas, sinais, ou dicas que pudessem dizer-lhe o que havia se passado naquela madrugada de quinta-feira. Mas com o tempo, o medo vai diminuindo e novamente perturbada pelo calor, viu-se obrigada a sair da cama em busca de algo gelado para beber. Um pouco mais prevenida, fez-se ter certeza de que estava bem desperta para sair da cama, pegou um guarda-chuva laranja que guardava pendurado em um cabide, para usar como arma caso fosse necessário se defender de algo ou de alguém. Caminhou a passos rápidos e pesados pelo corredor, contando com o ruído dos seus passos para espantar o que quer que pudesse estar por perto. Passou em frente ao quarto de seus pais, hesitou, pensando em chamá-los, mas seguiu em direção a cozinha; viu que estava mesmo sozinha, foi só um pesadelo, se afirmou novamente, tentando não pensar muito no que tinha certeza que vira. Deixou o guarda-chuva sobre a mesa e foi até a geladeira, pegou uma jarra de suco e quando a fechou deparou-se com aquela que tinha sua face, no mesmo lugar onde da última vez, as posições havia apenas se invertido. A outra parecia ainda mais assustadora, ainda mais faminta e diabólica. Janaina não gritou por medo de desmaiar novamente se assim fizesse. Pensou em pegar o guarda-chuva, mas a outra o tomou mais rápido. Então jogou o suco da jarra na cara da criatura, que apesar disso, não esboçou nenhum alteração em seu semblante, como se não houvesse sentido o liquido gelado em seu rosto. Trêmula de medo, Janaina correu em direção ao corredor, mas quando pisou no suco que havia derramado, escorregou e caiu de cabeça no chão, novamente desmaiaou. Acordou alguns minutos depois, ainda no chão frio, porém muito mais fraca, muito mais tonta, totalmente exposta e em seu pulso o que antes eram dois pequenos furos, agora se faziam dois buracos, com ematomas roxos ao redor, amedrontada, levantou-se, com dificuldades e correu para o quarto, onde se enfiou debaixo de suas cobertas e dormiu tranquilamente devido à exaustão que sentia.
Na manhã seguinte, ao se levantar, procurou seus pais, mas os mesmo já haviam saído para o trabalho, por ser férias, não tinha muito o que fazer, não queria estar sozinha em casa. Passou o dia todo trancada no quarto, a noite quando sua mãe chegou foi lhe perguntar o que novamente havia acontecido, pois tinha encontrado a cozinha bagunçada, Janaina contou que novamente havia visto alguém, sua mãe pensou em acreditar na possibilidade, mas quando a menina disse que esse alguém era exatamente como ela e que parecia ser um fantasma, sua mãe constatou de que se tratava de outro pesadelo, a menina não mostrou para sua mãe a prova do acontecido, estampada no pulso, pois tinha medo de que quisessem levá-la ao médico e a coisa que mais temia, até então, era médico.
A noite chegou, Janaina se deitou cedo, estava com muito medo daquela criatura surgir novamente e tinha certeza que, por mais que sentisse vontade de tomar algo, não iria até a cozinha durante a madrugada. A mãe disse ao seu pai o que Janaina havia lhe contado, sobre um fantasma na cozinha, este, preocupado, decidiu que quando a menina pegasse no sono trancariam a porta do quarto e para que não sentisse sede na madrugada, deixariam uma jarra com água bem gelada sobre a escrivaninha da filha. “Mas não vamos avisá-la que vamos trancá-la?” “Acho melhor não, ela pode pensar que estamos achando que ela é louca, levantaremos algumas vezes durante a noite para ver se ela está bem, amanhã bem cedo, vamos levá-la ao médico”. Assim fizeram, trancaram a menina logo que a mesma começou a roncar.
A noite foi passando e o calor da madrugada que tanto incomodava Janaina fez com que ela despertasse. Lentamente abriu os olhos, quando viu que agarrada ao seu braço esquerdo estava a criatura assustadora sugando-lhe o sangue. Ficou imóvel, olhando por alguns instantes a criatura tomar de suas veias seu precioso sangue. Não ficou parada por muito tempo e ao perceber que a menina despertara a outra, que estranhamente tinha a mesma aparência que ela, largou seu pulso e caminhou de costas até o canto da parede. Seus olhos estavam acesos num alaranjado fogo intenso que quase iluminava o quarto que era iluminado apenas por um velho abajur. Janaina correu em direção à porta, mas viu que a mesma estava trancada. Desesperou-se e começou a gritar por seus pais.
A criatura maligna, com ar tranquilo, começou pela primeira vez a falar:
-Não adianta chamar por seus pais, eles já estão mortos, já esgotei cada gota do sangue deles.
-Mentira! Quem é você?
-Me chamam de o demônio da cozinha.
-Cozinha? Mas aqui não é a cozinha! Vá embora, por favor.
-A cozinha está aqui. Não irei enquanto não terminar o que comecei. Seu sangue, eu preciso do seu sangue- disse o demônio caminhando lentamente em direção à Janaina que ainda mais aterrorizada gritava por socorro e corria em círculos pelo quarto, perseguida pela criatura que não demonstrava pressa.
Janaina atirou-lhe tudo o quanto via, travesseiros, porta-jóias, seu ursinho de pelúcia, mas nada fazia aquele monstro cada vez mais feio e cheio de raiva parar de querer terminar seu serviço. Quando chegou na escrivaninha, Janaina então atirou os livros, que estavam em cima da mesa, até que pegou a jarra de água que seus pais haviam deixado. Quando assim o fez, já pronta para atirar na cabeça do demônio, o mesmo parou. Ficou parado, como se esperasse que a menina não jogasse aquele utensílio de vidro contra ele, mas foi questão de segundos para a jarra voar contra a parede e se despedaçar em um milhão de pedaços. O demônio desapareceu.