Entre Dias

Abrindo um livro de Tostoi, percebo o quanto uma realidade social pode ser distinta da outra. Em compensação, me sinto tão próximo da angústia que compõe o que parece ser uma realidade familiar humana. As unhas roídas pararam de doer, não ardem mais quando lavo as mãos. Mas o coração está ferido, com a extensão de uma doença incurável, ou aguardando o que venha lhe findar. Entre túmulos, paro diante de uma lápide e ao tocar o solo, uma mão brota da terra, acariciando meu braço. A suavidade do toque não faz perceber o quão apodrecido está o membro, que resiste à decomposição. Pisando descalço sobre a relva, pareço flutuar. Esse latido canino que ecoa juntamente com uma batida abafada, de um tocador incessante. Um dos olhos se avermelha e arde, deixando o outro livre para explorar a realidade de forma monocular. A gravidade busca me atrair, mas girando eu contrario sua sedução, fazendo-a nauseante e repulsiva.

O livro de mortas vidas é folheado vagarosamente, como se buscasse resgatar o passado. No copo a água evapora. O crânio na escrivaninha sorri, porque lhe expuseram os dentes ao retirarem toda a carne que lhe encobria a arcada dentária. Os olhos cavados me fazem criar olheiras por simulação de covas. Ouço o disco de vinil tocando um Beethoven, que me deixa surdo à sonoridade, vinda do que parece ser um televisor da vizinhança. Na rua o cão parou de latir, ocupando roendo a própria pata magra. Vitrola abafada por uma valsa que parece vir de cima. Tomo nos braço um corpo sem cabeça, dançando com rodopios potentes. O busto enorme arredondado, com mamilos escuros e tesos, balouça. A vulva carnuda e peluda, causa forte impressão. Vou guiando os quadris com o dedo médio introduzido no orifício anal, que quando levo ao nariz me faz sentir o aroma da mucosa anal.

De cima da colina observo um mar de corpos. Caminhando no solo mórbido, sinto quando uma pisada mais forte faz estalar alguns ossos. Espalmo alguns abutres que se intrometeram no caminho. Deito entre os defuntos, olhando o céu com visão viva em confronto com olhares mortos. Com olhos fechados vou tateando ao redor, sentindo falos e vulvas. Quando surge um sujeito de corpo feminino e genitália masculina. Nosso coito é realizado na cama de corpos. Me posiciona de quatro e penetra o membro, travestido de cão. Sinto os testículos feito um bulbo. Acabo beijando os lábios de algumas cabeças mortas. Senti também penetrar em algo, não identifiquei se era algum orifício expostos dos corpos, ou simplesmente um vão entre membros que aconchegara o membro rígido, que logo viria a ejacular. Teus seios com silicones deformados, pareciam vistas com estrabismo.

Rolando entre os corpos, caíra em um campo de frutos exóticos. Uma árvore de zebras, onde pude colher algumas espécies, sendo que algumas quebraram o pescoço ao despencarem da copa. O pé de macacos era leve de tal forma, que o vento os lançava longe. Um pomar rasteiro de vermes me deixou salivando. O céu era tomado de vegetação. Em vez de constelações, era possível enxergar um imenso jardim botânico. A lua era uma abóbora que emitia uma luminosidade alaranjada. Uma figura magnífica surge. O rosto bestial, utilizando uma vestimenta de ouro. Identificou-se como Seth, dizendo que me faria de seu Osíris. Fui esquartejado, os membros espalhados nos quatro cantos do mundo, fazendo com que o mínimo movimento fosse penoso, a ponto de provocar grande acúmulo de força que alterava a paisagem. A rotação do planeta faz sempre modificar a posição de meus fragmentos, o que dificulta qualquer forma de adaptação.

Um gigante se ergue, fazendo seu corpo com todos os cadáveres que encontra. Um verdadeiro Leviatã hobbesiano. Seth tenta confrontá-lo, mas acaba subjugado e sendo agregado à sua forma. Piedoso Titã que reúne meus fragmentos, engolindo por pedaços e defecando-me por inteiro. Me foi concedida a espada, que faz com que promova novas mortandades que alimentam o titânico ser. Por distração ofertei um ser vivo, que agiu como um vírus, desarticulando sua estrutura, reduzindo-o a um cetro enterrado no solo até os confins do centro da Terra. Justamente quando colecionava fetos para servirem de lágrimas aos olhos do gigante. Anúbis arranca-me o coração e joga-o na balança, que pende para o lado do infortúnio. No Inferno tento cavar para cima, mas quando a mão alcança a superfície, ninguém está do lado de fora para resgatar demônio que tentar desesperadamente emergir.