Tormento

Abro os portões de ferro, que rangem. Procuro os vidros que possam revelar o interior escuro, mas a claridade parece desfavorecer o ambiente interno. Circulo ao redor do local, em busca de frestas. Sou lançando abruptamente para dentro do recinto, mal sabendo se fui projetado ou sugado, talvez ambos. Tateando as paredes lisas, apenas explorando pequenos orifícios que vez ou outra surgem, como se fossem pequenos ralos invertidos, só que sem energia que possa que me eletrocutar. Os pés, já descalços, aderem ao solo frio, até sentirem o pisar aquoso, que faz respingar as canelas. Mas agora a mão segura o objeto que sobre o braço queima, fazendo chiar. O longo queimar faz a pele desprender, juntos com pelos grudados. Aroma de carne cauterizada. Com uma perfuração no pé esquerdo, parecendo um prego que adentrara a sola, por inteiro, fazendo o sangue se misturar a água, embora a baixa luminosidade não permita contemplar as cores que se misturam.

A cabeça parece girar sobre o tronco que cambaleia. Os óculos estouram e cacos perfuram as órbitas, causando ciscos dilacerantes. Cada piscar é uma agonia, com aquelas fagulhas diabólicas. Os pelos arrepiam no momento em que a lâmina afiada corta camadas de peles das pontas dos dedos. Não existem mais digitais, apenas marcas de sangue, que tocam as paredes, fabricando uma catapora grosseira na alvenaria. Sem contar a boca ansiosa que rói com seus dentes caninos, aqueles pequenos fragmentos de cascos, arrastando películas até produzir fendas que ardem. O peito se comprime por conta de um espasmo que quase faz o tórax trincar. No ritmo das veias que seguem uma pulsação violenta. Cabelos caem arrancados, feito cachos que desprendem após uma colheita feroz. Oferendas incessantes aos deuses da dor.

Para prostrado diante da revelação. Só caindo de joelhos por conta do que pareceu ser um alicate, torcendo-lhe os testículos. Uma marretada fez cuspir alguns dentes, mastigando e engolindo outros fragmentos da dentição fragmentada. No instante em que utiliza uma agulha para expulsar os ciscos, espetando os olhos, fazendo das órbitas um faquir. Já a tesoura de poda lhe divide a língua, transformando sua estética, em algo próximo a de uma serpente. Uma gilete faz fissuras nas cartilagens das orelhas, algumas que deixavam porções penduradas. O som de vozes que falavam sem cessar dentro do cérebro. Cada porta aberta dando para outro cômodo com novas portas. Passagens escuras que davam impressão de sempre repetir o trajeto. Enfrenta apenas o seu próprio tormento, que lhe persegue e maltrata, castigando com intuito de exaurir as forças.

Pede ajuda a figuras sem vida que pendem pelas laterais. Sem resposta, segue o martírio, tropeçando nos intestinos que de alguma forma foram expulsos. Agora toca em um livro que as páginas não pode ler, servindo de consolo a textura das páginas, que parecem tão convidativas ao tato. Um flerte de ponta de dedos com sangue coalhado, que ilude as laudas com um folhear quase despretensioso. É o vácuo que preenche o estômago, causando uma sensação de soco, que faz recuar, a ponto das costas explodirem contra mais uma das paredes. Escapa o soluço que vomita sangue que se faz simulacro de fala, em eloquente golfada. Escutando o eco dos passos que dera até aquele momento, feito sombra sonora que é memória aflitiva. Sempre perseguido por si. Nem se travestindo de curupira, consegue iludir o caminhar que o acompanha. Resolvendo dançar em um ritual de exorcismo, despencando exausto sobre a tábua que o ampara.

Retilíneo, estende-se além do objeto de repouso, tentando escoar pelas extremidades. Membros cerrados, restando apenas o tronco com o crânio, que logo é decapitado. A cabeça fica intacta, feito um ídolo exibido, que fita até onde a vista alcança, tentando rolar em direção a uma saída, mas apenas retornando com seu movimento circular, aos já visitados cômodos escuros. As portas abertas convidam para o próximo ambiente, sempre similar ao primeiro. Quando um choro irrompe. Nasce um novo ser que é ele mesmo, renovando o corpo para a continuação do ciclo. Nunca existirá morte, pois não existe saída. E no desespero, silencia, com olhos que se fazem cegos, a ponto de se inundarem com as trevas que engolem com fome insaciável, preenchendo o vazio com mais vazio, o que permite estar sempre cheio, sem nunca transbordar.