Flerte com a Morte
As vagarosas horas do relógio de ponteiros flechantes. A atmosfera sem nuvens, com céu opaco, sem astro algum que possa servir de parâmetro. Um aroma forte mas sem fragrância identificável. O som se faz mudo nos ouvidos, que captam um zunido baixo que entope os tímpanos e entorpece os sentidos. A solidão só se faz sentir pela presença de outro que nos diz que em relação a ele estamos sós. Um drink abandonado borbulha com sua efervescência alcoólica. Os objetos são expectadores de uma platéia silenciosa, que serve de figuração em um cenário de luto. Livros exibem títulos que formam letreiros verticais. Uma música toca, mas apenas o vibrar em ritornelo que faz a percepção captar as ondas sonoras.
Surge a presença magnífica da companhia que se aproxima sem ser notada. Se fazendo de notas, para aderir ao ritmo auditivo. Sua estética convida a petrificação do olhar, que paralisa diante da figura que se torna imã para quem ousa fitá-la. As órbitas sem olhos, de um negrume abissal, penetram até a alma que anima qualquer ser, mesmo os mais minerais, que se dizem brutalizados e menos sutil a essência que espiritualiza. Toca sem se mover, em uma sutileza que a brisa é rocha despencando de incontável altura sobre os poros. O ar é um instrumento violento que se condensa em um clima nebuloso, depressivo. As vestes são sua própria forma, que por ser inumana, não é possível identificar o que seria um corpo ou aquilo que o cobre, uma espécie de todo sem um discernimento ordenado.
Nesse caos ordenado de uma forma não compreendida, molda-se a tudo que possa ser chamado real, desfazendo em sonhos qualquer traço de consistência. Mas antes de se fazer onírico, oscila. Transita entre esferas provocando esse estado flutuante, nauseabundo. Pisa sem ter pés, desfalecendo o solo que evapora em nuvens de uma poeira rarefeita. A estrutura que forma a primeira impressão, se é pele, pelo ou qualquer outra substância que adere a esse plasma gelatinoso, que baila feito um espectro de coloração caleidoscópica, que se fotosensibiliza em um foco trevoso que oprime a claridade, forjando matizes cinzas. Possuindo força que arrebata com total submissão ao sujeitado, que adere sem resistência ao fluxo emergente, em um vórtice que nasce e dentro para fora do subjugado.
Eis que surge a contaminação ao redor do encontro, voltando o mais próximo para essa força centrípeta. Exibindo um sorriso que faz perceber por uma fenda sem qualquer indício de dentição, mas evidenciando-se por uma ironia dramática que inunda isso que se assemelha a uma face, criando um perfil diabólico, que escorre pelas bordas sem derramar, pende, feito estalactite maleável. O receio de que exista uma língua, que a qualquer momento possa serpentear para fora, com sua viscosidade ácida. Podendo engolir qualquer coisa que se encontre ao seu alcance, que é abrangente. Fazendo-se de buraco negro. Traça o limite entre aquilo que acreditamos conhecer e aquele mistério que envolve tudo até nós e além do que é possível detectar como limite nosso. Caminhando por esse vale de sombras, abre-se a caixa de Pandora, só que com a esperança já tendo sendo esvaído.
No momento em que um coro clama algo que preenche o fundo desse poço de lágrimas infinitas. Talvez a manifestação de falanges orquestradas, que com suas variantes sonoras, eclodem em um ditirambo alienante. Sempre luzes que se apagam, enquanto uma penumbra ascende, feito um mastro erguido que flamula um estandarte lodoso, que se apega na primeira impressão, envolvendo e parasitando, afim de fazer dessa aderência a sua forma de aumentar a prole. Rajadas lamentosas arremessadas de vários pontos, unidas como a explosão de uma supernova apocalíptica. Com fragmentos projetados nos confins do ser, em um Armagedom ontológico, estriando o logos, em uma sísmica erupção catártica. A ponto de desvanecer em uma ataraxia medonha, diluindo-se em um nirvana regurgitante, que sufoca em uma pneuma asmática.
A Morte dança em mim, não comigo, pois me faz de palco, sapateando sobre o corpo apático. Seu ritmo é uma valsa que rodopia a ponto de fazer o fluxo sanguíneo obstruir as artérias. Sedutora majestosa, atrai suas presas já cativas desde o nascimento, em um convite irresistível, que separa dimensões em um baile caosmológico. Assexuadamente sexualizante. Castrando fios de desejos que se desprendem despretensiosamente do Cogito rugoso, formando varizes que ao serem decepadas, enervam-se em uma hemorrágica abstração. É essa a arte do desastre que nos torna parte dessa louca dramaticidade.