Queen
Sentando-se, em frente a lareira preenchida com ossos, onde o cálcio alimenta o fogo. Balança a taça feita de crânio, ao estilo de Byron, com um bom vinho francês, degustando vagarosamente. Volta a face do crânio pra si, contempla as órbitas fundas, o tampo da cabeça sobre a mesa, servindo de petisqueira, com cérebro de aperitivo. O pingente de dentes, pende do cordão de fios de cabelos trançados. O anel de unhas, ainda conserva alguma porção de cutícula. O cão rottweiller, agraciado com o nome de Anúbis, rói um fêmur. Abre um volume de Augusto dos Anjos. Na parede a reprodução de uma gravura de William Blake. A moldura em ossos, enquanto a imagem, talhada em pele humana.
A vitrola com seus estalidos, toca Mozart. Uma voz ratifica: “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen...”. O capacho, composto de couros cabeludos de escalpelados. Uma coleção de crânios expostos em uma espécie de cabideiro, envernizados e alinhados. Alisa os cabelos negros compridos e escorridos. O cinto, uma coluna cervical, enrolado feito uma oroboros, naquela cintura fina. Uma pele de textura aveludada, de cor pálida, com pelos ralos e claros. Unhas alongadas, um pouco retráteis, que deslizam pela pele, descamando. Um longo vestido cobre o corpo, com cauda comprida, feito de porções de pele, ricamente adornado com pequenas falanges, ombreiras de carne, revestimento de pelos, com volumosa cabeleira que se estende além dos pés, arrastando ao caminhar pelo solo.
Os olhos de topázio, vasculham o cômodo de forma minuciosa. Despindo-se, expondo o corpo lívido nu. Seios pequenos, mamilos de um rosa claro, uma pequena penugem no baixo ventre. Caminha pé ante pé. Descalça. Deslizando sobre o chão frio, até adentrar o quarto. Aconchegando-se na cama, junto a um cadáver fresco. Um beijo curto nos lábios cadavéricos. O dedo toca de forma suave a perfuração próxima ao peito, o motivo do óbito. A coxa esbarra descuidadamente na lânguida genitália do homem mórbido. O sangue ensopa a roupa de cama, dando um tom magenta. No pequeno aviário, o crocitar do corvo de estimação, que é servido com porções pequenas de miudezas retiradas do abdômen aberto da vítima.
Um cheiro de sândalo invade o ambiente. Serve-se de uma lasca de pelve, que faz de espátula, onde lança pequenas quantidades de sangue na boca. Os dedos tocam os lábios respingados, contornando-os e limpando-os em um ato de degustação. Sobre a cômoda, um esqueleto fetal, vedado em um vasilhame de vidro. As cortinas compostas de falanges em abundância, produzem estalidos ao serem movidas. Como ferramenta de perfuração, utiliza uma tíbia partida, em formato de lança, que rasga a região abdominal do seu convidado. Para golpes mais violentos, o fêmur lhe serve de clava, onde a patela esmaga feito uma martelada. Arrancando os dentes com a força das mãos, utilizadas como alicates.
Masca a língua arrancada, feito volumosa goma de mascar. Acariciando a vulva com a parte mutilada e voltando a mastigar o tecido com consistência de borracha. No banheiro, uma banheira repleta de sangue, onde se banha, com um busto de Erzsébet Báthory enfeitando a pia. O odor putrefato se manifesta a todo momento, atraindo ratos, abutres e outros convidados para o farto banquete. Sobras são lançadas na parte dos fundos da colossal residência. Acende um cigarro com a chama da lareira, com tragadas intensas, criando pequenas hiroshimas com a face voltada para o alto. Voltando à leitura da poesia do autor brasileiro. O poema se chama “O Deus-Verme”, os versos saem de sua boca:
“Factor universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!”
Sorri de forma macabra. Tamborilando os dedos sobre um corpo feminino jovem, que ainda respira, aspirando um sopro de vida. Suspira profundamente. Olha pela janela e se perde na imensidão da noite. A lua está crescente, como seu desejo de morte. Um floresta é possível avistar, com árvores frondosas e um mistério que só o desconhecido é capaz de proporcionar. Assopra as chamas das velas, uma a uma. Fazendo com que a penumbra adentre o recinto. Pois dentro de si, já se faz trevas e a escuridão de fora é complemento ao universo abissal que se expande em teu ser.