Como um Cão

Correndo pelas ruas de paralelepípedos. Sou uma criatura que explora vielas, roçando por paredes com rebocos carcomidos. A corrida se parece mais com uma dança frenética de um esqueleto maleável. As patas escorregam em uma superfície lodosa, derrapando sem freios, pois as garras não podem conter o deslize, mesmo tentem se apegar a frestas que o calçamento deixa expostas. Os muros de chapisco quando esbarram nas costas, cortam, mas produzem uma coceira que eriça o pelo e faz com que os dentes se arreganhem em um reflexo de auto-defesa. Na proporção que as orelhas apontam para os céus e se deixam conduzir pelo menor ruído captado.

Os caninos já sobram para fora dos lábios tortos, junto com uma baba que desaba e mola o piso frio. A boca produz saliva na intensidade de um rio que não cessa de passar. Mas é a língua\ que não se aquieta, com sua gigantesca estrutura móvel, é capaz de alcançar pontos longínquos da cavidade bucal. Contando com o poderoso instrumento de olfato, que não apenas consegue aromatizar, mas degusta o perfume e faz dele uma iguaria. As veias intumescidas formam uma hidrografia circulatória. Invadido as órbitas e causando mais horror no olhar bestial que se apresenta, com matizes avermelhadas que inflamam expressão de fúria.

Uma criança corre na próxima esquina, inocente diante da monstruosidade que espreita no outro quarteirão. Um toco de cigarro ainda com brasa em vida, queima suas últimas esperanças de combustão, mesmo com a passada da criatura que o faz despencar do corrimão da escadaria e rolar rente ao bueiro. Baratas sentem a fumaça cancerígena e repudiam ao afastar-se do tabaco agonizante. Talvez temessem a respiração pesada que até os micróbios conseguem ouvir, pois o pavor parece influenciar até mesmo as células. Apavorados todos com as passadas silenciosos mas que se fazem ouvir por um estalido de ponta de unha que toca o solo.

As pistas são deixadas. Porções de pelos grudados em pontos que foram roçados com violência. Evidências de um transitar perigoso e caótico. Como as prostitutas na avenida, que se drogam e expõe o corpo maltratado, deixando no ar o nauseante aroma de perfume que sufoca os mais resistentes no olfato. A distração ocorre quando menos se espera, numa reação espasmódica. A ira causada por aquela coceira que faz erguer a pata de uma forma contorcionista, incontrolável, abominável, ao mesmo tempo irônica, pois a expressão de um falso sorriso com a abertura da boca, dão um ar grotesco e hilariante a cena de pulgas selvagens. Chegando a expulsar alguma coisa que é atirada contra a grama amarronzada de lama.

A memória resgata o cárcere de época recente, com aquelas amarras facilmente destroçadas. Sendo pior a remoção da coleira que enforcava, com pontas que espetavam a garganta, chegando a provocar perfurações, onde pontos de sangue se estendiam em um pequeno leito vermelho indo em direção ao tórax. Tendo a focinheira para dificultar a respiração, deixando o engasgo com gosto de sangue velho, engolido junto com a porção de carne crua que havia sido a última refeição. Causando fricção contra terreno pedregoso, triturando os adornos carcerários, deixando marcas da violência no focinho todo riscado, a ponto de sumir o pelo e surgir uma imagem descarnada.

A voz rouca é um uivo que ecoa pelo espaço, adentrando moradias feito um vento indesejado, com donzelas mais delicadas tapando os ouvidos com as mãos em concha. Uma sombra que parada atrás do pedestre displicente, se torna imperceptível, só mesmo causando horror pela respiração ofegante próxima que o faz virar bruscamente. Mas não o suficiente para averiguar o perigo real, contemplando apenas uma brisa deixada pela manobra rápida do possível algoz, que chega causar redemoinho com a poeira que tenta segui-lo, mas também ludibriada, roda sobre si e despenca suavemente.

É na poça, que visualize as feições de cão. Um espelho tremulante e aquoso de brilho fantasmagórico. A língua adentra a pequena porção de água e serve-se dela para saciar a sede, com movimentos em anzol, consegue fisgar o líquido e lançá-lo a boca ansiosa. A cauda mantendo-se rígida, vez ou outra se movimenta chicoteando, feito um quinto membro pronto a defender ou atacar. No mesmo instante que observa aquela bocarra rangendo as presas, cobertas por uma camada espessa de tártaro e fragmentos de carne presos entre molares. Os olhos se perdem naquele olhar engolido pelo pequeno oásis que traga a face e todo o resto, deixando apenas um resquício de gota que saltou no ato de absorver, um pequeno perdigoto perdido que percorre a imensidão da única realidade que é evidente.