A Risada
Nessa floresta tenebrosa, caminho por entre árvores que não consigo enxergar o cume. A vegetação espessa me oprime. Os passos estão cada vez mais pesados. Resolvo descansar, deitado com cabeça sobre uma pedra redonda que serve de rústico travesseiro. Encolhido em posição fetal, me protejo do desconhecido que me adentra a alma. Os sons de espécies noturnas me amedrontam. Queria olhar nos olhos desses seres que berram na penumbra, mas parecem Elementais que se divertem com meu desespero.
Sou uma criatura entre tantas outras, também causo medo a esses habitantes selvagens, pois possuo a desgraça da civilidade. Esse cheiro de musgo me faz pensar na decomposição do meu próprio ser, caso fosse deixado morto nessa paisagem. Avisto uma sombra que acredito ser um morcego, mas de proporções gigantes. Associo a um morcego, mas talvez tenha visto algo bem menos fácil de deduzir. Minha percepção é limitada por ser urbana, aqui estou diante de vidas que ignorava. O céu se esconde de mim, só consigo visualizar o chão, que também é preto. Estou no domínio das trevas.
A sensação de algo me observa, seguindo cada passo em falso que dou. Sou todo falso. Os galhos fazem sombras de fios que me tocam, manipulando-me feito um grotesco fantoche. Ouço um barulho. Algo caminha em minha direção. Identifico gravetos partindo. Pelo suposto peso, se for um confronto, terei problemas. A visão forçada, as orelhas abrem-se em movimento mecânico, toda forma de tentar captar qualquer coisa por antecipação, mesmo o olfato tenta selecionar com calma os aromas.
Uma risada repentina me faz estremecer, os pelos eriçados acompanham o reflexo. Agora uma angústia me apavora. Animais selvagens não dão risadas. O que me faz iniciar uma corrida entre trilhas bizarras, chegando a tropeçar, caindo no solo, agarrando-se a raízes que brotam do terreno. As mãos molhadas por mergulharem em uma poça, chego a abaixar a saciar a sede naquela água de pureza duvidosa. Aquele sabor de lama e lodo.
Logo me vem à mente o motivo de estar ali. Levanto ignorando as pequenas lesões, continuando a correr. O objetivo era fugir da risada, na verdade do suposto executor dessa brutalidade auditiva. Mas ela parece ter ecoado em minha mente, aprisionada em um repetismo que me enlouquece. Agora penso que não identifico se é risada feminina ou masculina, o gênero é uma incógnita. Se for uma pessoa, é alguém selvagem e por isso temo. As outras opções não são menos horripilantes, como uma besta risonha ou alguma criatura mística. Deveria ter enfrentado, mas agora dei a possibilidade daquilo se aproveitar da minha fraqueza.
Cortes sangram em mim. Brotando, feito estrias que nasceram recentemente. Sujeito sujo. Os cabelos desgrenhados dão o tom de uma estética insana. Os punhos cerrados, se preparam para um ataque a qualquer momento, mesmo que seja contra a própria face pedregosa, que estampa uma grafia cuneiforme facial. Aperto um bolo de terra, desfazendo- entre os dedos, sentindo pequenas farpas adentrarem a palma da mão. Começo a me bestializar, com atitudes brutalmente selvagens. Quase me curvo de quatro e esfolo os joelhos para imitar os quadrúpedes.
Sou assaltado pela ideia de rir de volta. Uma forma de retribuir o ataque. Só que minhas mandíbulas tensas, nem se movem. Nenhum ruído sequer eu consigo produzir, nada verbalmente, apenas o tato estala a vegetação ressecada. Estou mudo sem me fazer de surdo. Com as mãos forço a abertura da boca, chegando a arrancar alguns dentes no ato cruel, utilizando um pedregulho em forma de punhal. O sangue escorre das gengivas feridas, enquanto vou engolindo sangue e qualquer vontade de falar.
De joelhos, com as mãos para o alto. Não rezo. Apenas faço gestos de fúria para as copas das árvores, enquanto mastigo folhas e me esfrego no solo, transformando as vestimentas em trapos rotos. A urina que escorre, eu aparo com as mãos e levo a boca, num ato de oferenda excretora. Feito um Édipo, perfuro as vistas, os dedos adentram os globos oculares, as unhas rasgam e sinto estourar as órbitas. Estou pronto para enfrentar o inimigo oculto. O coração bate quase a ponto de explodir dentro do peito, sinto a caixa torácica ser forçada, o que me faz respirar com certa dificuldade.
Agora é um uivo. Talvez eu esteja licantrópico a ponto de soltar grunhidos lupinos. O gosto de sangue me agrada e já consigo morder uma parte do braço, alimentando-me de minha própria carne. Sou mais que uma besta, agora estou demoníaco e sou mais apavorante do que uma risada solta no ar. Sou a estética de um terror que faz engasgar o risonho e sufocar a ponto de morrer com a própria risadaria engolida. A cavidade bucal despedaçada, apresenta uma tentativa de riso forçada, que será a máscara que todos irão contemplar e em pânico, desejarem nunca terem rido.