Algemado

De joelhos, ele contempla a parede. As mãos algemadas atrás das próprias costas. O movimento apenas faz com que sinta uma dor alternada. Os olhos procuram uma brecha, mas a visão está presa em um recinto minúsculo, sem grandes atrativos visuais. Nem o sol arrisca adentrar o recinto, somente sombras, ou antes, escuridão sem contraste de luz. Só que existe uma fresta, que vez ou outra adentra a porta, revelando figuras sombrias que transitam em outro ambiente, tão próximos e inacessíveis.

Apesar de não existir mordaça, não é possível proferir nem uma palavra. Sua condição é muda. A voz não passa de uma lembrança esquecida, fazendo-se fantasia na memória, que busca vagas recordações auditivas. Uma espera sem esperança. Sentindo a dor dos joelhos fatigados pelo peso do corpo sobre o solo. O piso gelado aquece e esfria, enquanto a dor se acentua, a ponto das pernas tremerem, as cãibras violentas, fazem transcender o sofrimento, fazendo emergir o desejo de morte.

O mundo se resume a um cômodo. Quatro paredes. Um quadrilátero infernal. Sua mente elabora formas cúbicas, criando sensações de movimento dentro daquela caixa imóvel. Chega a ser claustrofóbico. Pois as paredes parecem comprimir, a ponto de faltar ar no recinto, por mais que saiba das frestas. Ainda assim, sufoca. Nem a tosse quebra a condição de silêncio da voz. Parece que as trevas falam, só que de uma forma visual, uma espécie de braile das sombras. Onde o público é composto de um só cérebro que se faz em dois olhos-telas.

Uma das tíbias, estala. Enquanto o fêmur finge ignorar seu estado degenerativo. A cabeça baixa faz da visão uma lanterna quase apagada, que vai tateando o chão escondido, em busca de um resquício de algo para aquele ser de pouca referência. Tenta se dissolver por aquela diminuta abertura da porta, mais nem em lágrimas consegue mais se diluir, até o suor parece ter secado. A pele áspera, denuncia o estado seco do corpo castigado. As lembranças se extinguiram, só consegue pensar em uma saída, que é sempre frustrada por sua condição contínua.

As pontas dos dedos tentam alcançar os pés, que parecem cada vez mais distantes. Enquanto a coluna não permite mais curvaturas. Até o leve balançar do tronco é impossível. Uma verdadeira estátua, que transmitiria penúria, se alguém pudesse observá-la. Mas está restrita a um local secreto, escondida do mundo, rejeitada por qualquer fé. Menos que um bode expiatório, já que os caprinos desse tipo, ainda são expiados. Se não fossem as dores, nem mesmo teria certeza de estar vivo, já que se sente quase morto por dentro. Doer se tornou o único atrativo.

O crânio não ergue mais, uma espécie de caxumba ao contrário. Encara a flacidez da genitália lânguida, que não urina faz algum tempo, pendendo do corpo, feito um apêndice inútil. Atrás é possível roçar as nádegas com os braços aprisionados. Já contou várias vezes os pelos do peito, embora nunca acredite ter identificado o número exato. Nutrido por um resto de si. Agora se lembra. A língua decepada com uma dentada, engolida com tempero de sangue. Por isso não fala. Se pudesse, devoraria a si mesmo feito uma Ouroboros, só que começando pela cabeça, uma forma de virar-se ao avesso.

Passaria para uma metamorfose larval. Uma larva. Talvez muitas. Devorando essa estátua de carne, até que fique apenas às algemas, como prova de algo esteve ali cativo. Um souvenir diabólico, deixado de herança. Enquanto a larva ou larvas insatisfeitas, rastejariam em busca de mais tecido. Insaciáveis, seriam apenas limitadas por uma pisadas que as esmagariam, reduzindo-as a uma viscosidade que o tempo tende a secar.