Arte Assassina

Através dela, que falo. Uma lâmina que me serve de pincel, onde vou traçando minha arte assassina. Sulcando a pele de minhas vítimas, transformando-as em telas vivas, dependendo do momento, já mortas. A tinta é o sangue que escorre na ponta do objeto, que abre novos guaches avermelhados. As cores se misturam, além da tonalidade da pele, temos os pelos, os próprios dejetos expostos pelo pânico, compondo uma aquarela do terror. O grito de horror reprimido, aparece como silhueta de pânico, com a boca aberta, em um poço de voz abafada. Não sou nenhum dos gênios aclamados, muito pelo contrário, sou repudiado.

Mas sei da importância da minha criação, do quanto é possível esboçar sensações mesmo a espectadores distantes, ao lerem aquele anúncio nas páginas policiais, ou mesmo a manchete de um telejornal que divulga o fato. Para afetos das vítimas, não passo de um monstro, mas se deixam levar por vãs emoções, não reparando no sentido mais profundo, pelo obscurantismo de uma aflição passageira. Felizes dos meus modelos, que puderam em seu sacrifício, tornarem-se heróis de algo para a posteridade, símbolos de um trabalho grandioso e desafiante.

Vejo este recente quadro, com esse rosto tão jovem, os cabelos loiros despenteados. Os olhos abertos, duas safiras que resistem ao ultimato das trevas, parecendo fitarem meu ser, que contempla essa imensidão azulada de expressividade. A tez de porcelana, com pelo dourados feito brisas de sol sobre um campo de trigo, transformam num magnífico espetáculo de se ver. Os dentes, tão bem alinhados, as orelhas com curvatura bem feita, um modelo estético sem dantescas proporções, tudo remete a delicadeza. As mãos, tão pequenas, nem puderam conter a brutalidade com que foi contida.

Dorme, feito ingênua criança. More, como um cadáver que desejava o Paraíso. Foi tigrada com a lâmina que abriu sua pele, expondo uma estética felina, com listras avermelhadas. Provo da tinta que escorre, delirando com o frenesi do louco artista diante do inusitado. Me pincelo feito um pintor amador, causando um caos nesse ateliê da tortura. Restos de unhas e pelos são vistos discretamente pelo chão. O corpo nu, com o ventre voltado para o teto, apresenta dois pequenos seios, com tênues auréolas rosadas. A vulva, de pouca penugem, enquanto a vagina, selada, privada de uma experiência masculina.

A perfuração fatal, feita abaixo da mama esquerda, é algo sutil. Uma pequena fenda, que abrigou com carinho o aço bruto que adentrava sem pressa. Apenas as lágrimas rolaram, mesmo assim sem grandes cataratas, um choro ressentido. Borrando a maquiagem exagerada, fazendo da face uma mistura magenta. Os lábios afinados, parecem formar um bico finíssimo, onde ainda posso escutar resvalar aquele último suspiro. Parece um anjo, que logo ganhará novas feições, pois quando atingir o estado de putrefação, essa arte viva apresentará outras facetas dessa obra genuína. Já posso imaginar as larvas se proliferando, o aroma não mais adocicado de perfume, o negrume colorindo esse branco mármore.

Aí sim, chamarei as autoridades, denunciarei o homicídio, deixarei fotos do antes para que comparem com o depois, para terem uma pequena dimensão do que foi conquistado. Essa falsa pureza apolínea, agora é vivência dionisíaca. Aos olhos do público chocado, serei o demônio que precisa ser caçado. Mas espero que a sensibilidade toque alguns de caráter nobre e possam ser transformados sem que precise passarem pela experiência de vítima. Outros artistas virão, talvez eu seja ou não aclamado, mas a arte está além das meras projeções do criador, ela ganha vida própria e desumaniza.