Música Sangrenta
Essa melodia invade-me a alma. Corro pelos cômodos mas ela sempre me arrebata. Sou um escravo sem possibilidade de abolição. Talvez a morte possa servir de armistício. Mas parece que serei perseguido até depois de falecido. A maldição de Orfeu adentra meus tímpanos, fazendo-os sangrar. È um sangue auditivo que sai em ritornelos. Sangro por um corte incicatrizável. Uma hemorragia que sempre tem sangue para expelir, num heráclito rio de mercúrio. Navego por essas águas púrpuras, sendo que meus poros gotejam para contribuir com o volume aquoso.
As lágrimas não são menos vermelhas. O sabor ferruginoso é pestilento, envenenando o paladar castigado. Quando penso no breve sossego, eis que surgem os violinos. Perversas varas que laminam as cordas, cerrando meus pulsos com seu fio preciso e afiado. Fazem de minhas veias suas cordas, decepando-me por inteiro, abrindo brechas que me fazem escoar. Sou um ralo vivo. Um ralo virado para o mundo, deixando o sangue seguir o curso. Antes de pensar a respeito me falta o ar. São os instrumentos de sopro, deixando-me sufocar, golfando poças de sangue.
Será que vou contemplar essa orquestra do horror? O corpo flagelado pede fim antes do próximo instrumental, embora já tenha se curvado desde o primeiro ato. Mas o maestro é cruel e não deseja que o ritmo tenha fim, por isso exibe seus movimentos, com a baqueta de ponta que fura-me as vistas, deixando as órbitas cegas. Um Édipo que tenta chorar da própria desgraça, mas que ri feito uma hiena banhada em sangue. A ironia da selvageria que descarna, fazendo com que os toques da percussão façam perfurações profundas, fazendo-me um tosco faquir, vodu vampirizado.
O dedilhar de uma enxurrada de mãos com unhas afiadas, escarificam minha pele maltratada. Sinto o aroma da vibração que atinge o cérebro, deixando-me tonto. Não desmaio, apenas me torno lânguido, a ponto de ser conduzido. Assovio tão forte que cuspo os dentes, a língua se enrola em uma asfixia forçada. Estou sendo vazado por essa flauta que um Fauno maligno toca. São os assovios que não pude criar, agora sendo soprados com violência em direção a minha face, descamando a pele em porções generosa. Sou uma serpente que muda de pele, mas que se travesti de carne que não hesita em sangrar.
Agora ouço um teclado, que faz meu coração bombear com valentia. A língua prova o sangue que desce pelo braço. Mas logo regurgito, devolvendo ao exterior de mim para que o fluxo não possa se inverter, sou um meio e não um fim, sem pretender uma finalização que me justifique. Mas desejoso de um término dessa canção diabólica. Ninfas descarnadas dançam a minha tragédia, enquanto um compositor infernal não reprime seu gênio artístico. O grito da minha dor faz parte das vozes de um coral de aflitos. Juntos orquestramos o desespero, em um espetáculo de público ausente, onde o drama encenado só interessa àqueles que atuam enquanto intérpretes de um mundo devastado.