TERRA MORTA (FINAL) - ARARAQUARA/ JUNDIAÍ (SP) - CAPÍTULO V

Depois de tanto estardalhaço o ar-condicionado pifou de vez e para aumentar o suplício, meus olhos começaram a falhar. No entanto, o que eu poderia fazer? Para ficar inteiro nesse fim de mundo, com certeza eu ainda teria de passar por mais apertos e infelizmente, teria de agüentar um dia de cada vez sem por o carro na frente dos bois. Só pelo fato de manter a cabeça eu já ganhava a certeza de meia vida e passando por cima do sol escaldante, após uma hora sentando o pé finalmente cruzei as rodovias até chegar a Araraquara. Como de costume, o calor se fazia presente e virando as palhetas do ar-condicionado num ato mecânico, novamente fui recebido pela morte. Os sentidos mais primitivos gritaram e de imediato senti o cheiro de pólvora misturado a algo acre. Fudido como tantos outros, eu avancei pelo pátio atrás de respostas, quando atordoado por um clarão fui surpreendido pela cena mais medonha da minha vida! E olha que não sou um sujeito impressionável! Sem dúvidas a humanidade estava doente e mesmo nos dias normais, nada poderia me garantir que algo do gênero não acontecesse. O fogo era forte e a cada lambida, as labaredas mostravam do que eram capazes sobre a carne humana. A minha frente, resgatando os tempos da Santa Sé, mais de trezentos corpos incendiados formavam uma fogueira humana!

Realmente no inferno nevam brasas, e o que era uma universidade, depois da guerra civil acabou reduzida a uma desova coletiva. Pelo chão encontrei projéteis e analisando as cápsulas logo descobri que o exército estava metido nisso. Os fuzis e pistolas de uso exclusivo cantaram a rodo e abrindo espaço dentre os mortos, venceram aquela batalha e a princípio rumaram para Ribeirão Preto. Infelizmente havia chegado atrasado... E naquela hora, evitando me deixar abalar pela falta de sorte, alcancei a guarita pipocada e pensei duas vezes se valeria à pena entrar em outra cidade fantasma. Quem sabe fosse mais jogo partir para Ribeirão, ou quem sabe cruzar as estradas de Araçatuba até o Matogrosso do Sul. Qualquer coisa seria mais inteligente do que ficar por ali, entretanto guiado pela curiosidade os espaços foram tornando-se mais estreitos, até que o gemer da primeira besta invadiu o recinto. Sozinho em meu carro, envolvido por este cântico sombrio, da pior maneira comprovei, que quanto mais próximo da capital, mais merda eu veria pela frente.

Meti a cara no inferno sem medo de ser feliz e apenas parei, quando percebi que há anos não via um pôr do sol tão bonito quanto aquele. O sol avermelhado, vagaroso se desfazia em meio à noite. Um espetáculo gratuito, que ao alcance de qualquer um acabava esquecido... Naquele momento não quis aceitar o fim da humanidade, mas seguindo adiante com o machado na mão, agradeci por ainda estar de pé e vasculhei a região atrás de algo que prestasse. A pressão pela sobrevivência poderia tirar qualquer um do sério, mas no meu caso fazia parte da rotina. Contra vivos ou mortos, eu jamais poderia dar bobeira e mesmo assim o destino do meu povo geralmente é o mesmo... Lembram-se dos “Três Cês”? Cadeira, Cadeia ou Caixão? Então, é a mais pura verdade e para piorar, ainda vivi tempo o suficiente para descobrir o “quarto” de comida! Na boa... Ao pensar que já tinha visto de tudo, eis que para calar a minha boca começa essa onda de infetados. Honestamente, até agora tenho dúvidas se estou acordado, mas pra garantir o que conquistei a duras penas, continuei triturando o que brotava no caminho.

A noite caiu e nada de novidades. Ainda vagando pelo entorno da faculdade, liguei a luz interna e pelo que restou da sinalização segui um foco de energia lá pelo fim do campus. O sereno desprendia do céu e manchando o pára-brisa, trouxe a paz do cheiro de terra molhada. Os vaga-lumes também poderiam ser vistos. Até aquele instante eu ainda não havia percebido nenhum sinal de comida, armas ou das bestas, e assim mantendo o percurso achei uma lona enorme, que para minha surpresa escondia algo que parecia ser um alojamento militar. Pisquei o farol duas vezes e não tive retorno. Contudo, ao me aproxima rum pouco mais, ouvi passos. Cauteloso ganhei espaço dentre os escombros. Pela frente só via sangue, cartuchos, corpos e barricadas. A coisa estava preta e mesmo tentado a descobrir o porquê daquele alvoroço, optei por cagar pra curiosidade logo ao escutar um disparo. Que susto da porra! Que só piorou ainda mais, quando outro infectado veio ao meu encontro. Pá pum! Uma acelerada marota e menos um verme na face da Terra. Nessa altura do campeonato eles não me assustavam mais, no entanto bastante intrigado com a possibilidade de encontrar outro sobrevivente acelerei em direção ao beco. A expectativa de encontrar outra pessoa me deixou ouriçado, e meus pelos tremeram por inteiro, quando finalmente topei com o infeliz. Na verdade o cara estava mais pra lá do que pra cá, e trajando sua farda da polícia militar o vi rastejar até um degrau, quando encarando a caminhonete, ele me pediu para abaixar os vidros e disse:

- O que faz aqui? Não vê que destruíram tudo?

Em busca de respostas, ignorei a pistola de alto calibre que ele portava, e perguntei sem cerimônias:

- O que houve?

Passando a mão no rosto ensangüentado, o policial diz sem paciência:

- O que houve? Olha pro lado porra... O mundo acabou cara! O inferno abriu as portas e aqueles imbecis trouxeram o diabo pra cá.

Na hora, talvez pelo nervosismo do sujeito a beira da morte, eu não compreendi o que ele queria me dizer. A resposta não teve o mínimo de nexo, mas antes de esboçar qualquer outra questão, o milico respondeu:

- Por alto, soube que é culpa duns doutores da faculdade, que trouxeram um cão contaminado pra cá invés de sacrificá-lo. Ô gorducho, me escuta... Essa gente não morreu e voltou. Eles estão contaminados por uma espécie de raiva, mas pra que curá-las, se é mais barato pro governo usar uma bala?

O silêncio dominou novamente. Todos sabem que é muito mais prático jogar a sujeira pra debaixo do tapete, ao invés de assumir e limpar a cagada que fez, então por que o governo faria diferente? Como policial, ele certamente também já esteve nessa posição, nem que fosse para fazer o justo. Nunca fui de sentimentalismo, mas ao encará-lo pude sentir uma pontada de arrependimento vindo dele. O cara era guerreiro e contendo o sofrimento do balaço, conseguiu soltar algumas palavras com dificuldade. Em breve meu mais novo companheiro bateria as botas. E quem diria? A primeira pessoa com quem conversei nesta terra de ninguém foi um policial. Irônico, não? Só que nessa altura do campeonato, não existiam mais os lados na disputa do poder, e talvez nem o próprio poder. Profissão a parte, o cara bem que parecia ser um sujeito legal, pena que sangrava horrores por aquele ferimento à bala tão feio. Agora as coisas faziam sentido! Pelo jeito a guerra nunca existiu... Por isso não havia um corpo de pracinha. Que sacanagem! Naquela hora até pensei em perguntá-lo, mas o sujeito parecia ler a minha mente:

- Sim, esse foi o preço que paguei por não matar inocentes. O que eles fizeram foi um absurdo, as pessoas nem tiveram chance de reação. Os sobreviventes lutaram sozinhos e superando a dificuldade invadiram um dos prédios da faculdade, mas pra que? Eu entrei para as forças armadas com o intuito de proteger os cidadãos de bem, mas se o meu patrão acha melhor matá-los, que mate a mim também. Afinal, é bem mais em conta eliminar as testemunhas, do que buscar a cura, certo? Depois da merda feita, um político qualquer, de preferência o governador, vai inventar uma mentira na tevê e justificar as mortes. De deslizamento a epidemias, o que não falta é opção. E falando em opção, tem um cigarro aí pra me arrumar?

Encarando o último desejo do moribundo, me recordei do maço roubado na loja de conveniência, então estiquei o braço para fora do veículo e avisei que não tinha isqueiro. Sem dar a mínima pro meu comentário, o homem da lei sacou seu próprio isqueiro e finalmente deu uma tragada profunda no vício. Dava pra sentir a dificuldade em respirar, no entanto invés de morrer engasgado, o cretino tragou a fumaça e revelou enquanto deixava escapuli-la por seu nariz:

- Então sangue ruim? Vai me dar um fim digno ou quer que eu te mate? Por acaso achou que não te reconheci, Henrique Sanzio? Pistoleiro número um da Família Maranzano.

O filho da puta sabia meter bronca e quando o cano parou na minha direção, tive a certeza de que não era um blefe. Minhas pernas tremeram sobre os pedais e num relance me vi morto com um buraco na testa, porém para o alívio total da nação, o bastardo arremessou a arma e me disse estar contaminado. No fundo, o cara só queria uma morte rápida, então deixando o veículo para ir atrás peguei a pistola, tirei o pente de munição e chequei a quantidade de balas. Mesmo querendo ajudá-lo eram poucas balas para muito problema, e em hipótese alguma poderia me dar ao luxo de desperdiçar tanta sorte. Nesse exato momento, com os olhos marejados pela dor ele sentiu que seus planos foram por água abaixo. O cara que tanto falava permaneceu calado, até que ao fechar os olhos, num movimento preciso, puxei o cabo do machado e atingi-lhe no topo do crânio. Pronto!Menos um pra sofrer!

De arma em punhos, deixei o machado enterrado na cabeça do coitado e fui dar uma sondada para ver se área estava realmente limpa. Ao menos era o que parecia, por isso dei outra ronda em busca de armamentos ou material de necessidade básica. Achei que fosse perda de tempo! Nos primeiros minutos não encontrei porra nenhuma de útil! Apenas mortos e mais mortos largados pelas ruas. Parecia que a cidade havia passado por uma revolução. A nuvem de fumaça era densa, por isso acendi o farol alto e só assim que descobri os primeiros milicos mortos. Um jipe, armamentos pesados e ração humana. Puta que pariu, era disso que eu precisava! Logo á cem metros roubei o primeiro fuzil, só que na hora puxá-lo, para a minha sorte a bandoleira ficou presa! Se não fosse o pescoço daquele sargento de merda, eu estaria em pedaços! Francamente, só deu tempo de ouvir as pás girando e me abaixar. Em segundos a carroceria da caminhonete foi reduzida a entulho ao ser sendo metralhada por um helicóptero. Os disparos arrasadores com certeza vieram da ponto cinqüenta, e assim deixaram bem clara a intenção do governo de, exterminar todo e qualquer foco de doença ou informação.

Saldo final: Ganhei um uniforme camuflado repleto de sangue, um fuzil e duas pistolas. Infelizmente, os mortos não seriam mais meus únicos inimigos, por isso resolvi buscar um carro escuro, e com as luzes desligadas me aproveitei da escuridão. Depois da experiência em Araraquara, as coisas complicariam de vez, e... O que foi isso! Merda de bestas filhas da puta! Não sei se vocês conseguem me escutar com as pancadas na porta. O som das batidas é irritante e o estalar da madeira me preocupa. Talvez vocês não consigam saber o final da história. A madeira até que é de qualidade, mas agora depois de tanto resistir, vejo a primeira rachadura se abrindo e não tenho noção do quanto ela ainda suportará. A corrente velha e enferrujada também começa a esticar seus elos. Perdão galera, mas acho que a história ficará para depois. Tenho que pensar em algo diferente, talvez fugir pela janela, mas como? Meu corpo não consegue responder. O cansaço me derruba, sinto meus olhos fecharem a força e pelo visto o meu fim será dentro de um banheiro de empregada. Bom... Como eu disse antes, na Terra Morta só sobrevivem os mais rápidos.

Os golpes cessaram novamente e a merda da porta agüentou bem. Sabe parceiro, podem dizer o que quiser, só que ninguém morre virgem, nem que a última a te foder seja a vida! Agora minhas idéias são outras, e talvez eu não esteja mais em condições de reagir. A pistola está ao meu alcance e aquela idéia de evitar o sofrimento ganha mais força do que nunca. Nessa hora vejo que não tenho um décimo da coragem daquele policial de Araraquara. Há quantas horas ou dias ele estava por lá? Sozinho, sem comer e beber! Matando os demônios que o cercava, para no fim, só pedir um cigarro e a morte digna. Queria ser forte como ele, contudo acho que vou ficar com o caminho mais fácil. O “berro” já está na minha mão, basta um click e me libertarei desse inferno! Deus me perdoe por tudo e mesmo que eu vá para o inferno, foda-se eu aceito! E me desculpe por esse palavrão também!

Imagino-me num lugar melhor, trinco os dentes sobre o cano e finalmente aperto a porra do gatilho! Foda-se o meu orgulho! E pelo visto fiz a coisa certa, pois no mesmo instante que as feras derrubam a merda da porta, meu sangue se espalha pelo cômodo. Engraçado... Invés de culpa, sinto-me leve como uma pluma! No entanto, retomando o inferno astral, em meio à invasão e a explosão da pólvora, enquanto caía em câmera lenta ainda pude escutar as pás do helicóptero regressando. Talvez eu devesse ter esperado por mais tempo... Merda de mundo injusto! Caí de olho aberto vendo tudo embaçado, enquanto as bestas, confusas pelo som da hélice, sequer esboçam reação ao serem massacradas! Dezenas de projéteis cruzam o cômodo e estouram o ladrilho raspando o que sobrou da minha cabeça.

Os soldados que ali estavam não vieram para perder tempo e sem o mínimo de piedade, mesmo depois de checar os corpos davam-lhe tiros de misericórdia. Bom, ao menos dessa eu fui poupado... No meu caso, mesmo agonizante não haveria risco de sobrevivência, por isso, quando um deles se aproximou não me assustei... Perá aí! Que porra é essa? Porque esse filho da puta tá usando sapatos italianos? Não pode ser! Puta que pariu!!! Frente a frente com a salvação tento manter-me lúcido, até que meu sangue escorre e de uma vez por todas tampa o que me resta da visão. Puta que pariu! Logo agora! Por que pai?!

Tudo acabou? Mas que merda é essa? Será que to sendo levado pro inferno? Mas então, o porquê dessa luz? O brilho é muito forte, ao contrário daquele que me puxava. Tentei algum contato, quando ao ouvido escuto a voz do meu cunhado, que aparentando bastante nervosismo pede para que eu agüente firme. Não entendo muito bem o que está acontecendo, mas ouço algo a respeito de não deixar viúva e órfãos... Caceta! Será que eles estão a salvo? Caso estejam, muito obrigado senhor... Não entendo os seus planos, mas se for pra ser assim, foda-se! Eles valem muito mais que eu! Aos pouco os sentidos parecem regressar. O magricela fazia força, mas apesar da dormência, misteriosamente senti o deslizar das nádegas pelo espelho de sangue, até que interrompendo qualquer sensação, o breu me consome novamente! O que está havendo? Estou muito confuso! Cadê a merda do celular? Não consigo acreditar nisso, será que é a merda de outro sonho como aquele da SP 305, ou simplesmente é culpa do projétil explodindo meu cérebro? Não faço idéia do que está ocorrendo. A minha única certeza, é que assim como o celular, acho que a minha bateria está acabando...

( Texto participante da Antologia Terra Morta, Original Tiago Toy)

Fim?

Vittório Torry
Enviado por Vittório Torry em 04/02/2012
Reeditado em 17/04/2012
Código do texto: T3480096
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