TERRA MORTA - JABOTICABAL (SP) - CAPÍTULO IV

O número de bestas havia dobrado ao ponto de me cercarem! Em segundos o último ataque começaria, e restou apenas uma solução... Ligar o foda-se! Instantaneamente o medo desceu pelo ralo e a fim de uma despedida gloriosa, resolvi dar a cara à tapa e larguei o aço naqueles filhos da puta! Na boa, truculência virou meu segundo nome! E me sentindo o Stallone do interior paulistano, eu botei na cabeça que era matar ou matar! E assim fui recompensado, já que no primeiro disparo estourei dois vermes com uma bala só! Cuspindo chumbo pelas ventas, fiz varar pelos ares as tripas daqueles vadios! A cada sorriso dado amistosamente eu retribuía com aço e foi assim que cheguei longe. Restavam apenas doze monstros e sem medo de ser feliz, incorporando um soldado nos campos de batalha, meti chumbo em tudo que se movia. O que fiz, parecia inacreditável. O suor pingava pelo meu queixo e a beira de um colapso, num último esforço dei outro tiro para afastá-los, até que para minha felicidade acabou a bosta munição. De cano vazio, vendo as bestas ganharem terreno, foi impossível não me lembrar das balas que gastei na velha da estrada. É brabo... Tinha hora que o meu temperamento fodia com tudo!

Sem balas, assisti as feras se aproximarem em câmera lenta. Apesar da vontade de viver, meu corpo não resistiu ao cansaço e a cada passo eu ficava perdia velocidade. Em breve eles me alcançariam e não tinha muito que fazer além de continuar correndo, então para aliviar o fardo resolvi largar o restante das coisas, incluindo a espingarda. Estava só com a roupa do corpo e para me defender, apenas a faca da cozinha. Parceiro! Vi a morte bater na porta e quando já tinha a certeza de que viraria o desjejum daquela raça, dei de cara com a mangueira de incêndio. Em outras circunstancias eu quebraria o vidro e partiria pra dentro com o machado, só que neste estado não dava nem pro cheiro. Era aquilo ou nada, então perseguindo a última chance de sair literalmente inteiro, com o que me restava de energia tratei de quebrar o vidro. Qualquer segundo poderia fazer a diferença, por isso não perdi tempo ao puxar a mangueira e abrir o registro. Que merda! Só de lembrar me dá raiva! Fiz uma força do cacete, mas nem movi um centímetro do desgraçado! Como não dava pra voltar atrás o lance era confiar no taco, e tirando força de onde não existia finamente consegui abrir passagem para o jato salvador... Nem uma gota de água sequer! CARALHO! Foi exatamente o que gritei aos céus! Quando dominado pelo ódio peguei o machado e fui pro braço.

Não sei se vão acreditar nas minhas façanhas... Foda-se também! O fato é que não há razão para mentir e caso não levem fé no que digo, ao menos tentem responder: O que é impossível num mundo onde os mortos comem os vivos? Nada! Posso não ter medo de cair, mas por que me entregaria de bandeja? Para ser franco, nem sei ao certo o que aconteceu. Recordo-me apenas que numa única tacada acertei um garoto de aproximadamente oito anos e cortei a primeira cabeça da noite. Depois disso, apenas borrões surgindo. Vivos ou não... Pintei o cenário de sangue e fiz dali um inferno maior do que era, ao ponto de depois do massacre, ainda sobrar tempo de eu pegar o que deixei pra trás. No final da pancadaria, com a blusa coberta de sei lá o que, senti um estalo na cabeça e caí duro no estacionamento. Pode parecer sacanagem, mas o meu corpo havia dado curto-circuito e sem conseguir mover um músculo sequer, dei de ombros pro que estava por vir. Nessa hora o vento era frio e machucava meu peito. Minhas forças estavam acabando e antes de apagar, num flash assisti as bestas sumirem pelo horizonte. Deus do céu! O que aconteceu com essa gente? Cadê a vida? Aquela mesma vida que em centenas de ocasiões fiz questão de tirar. Pode ser irônico, mas hoje sinto falta dela. É rapaziada, sabe aquele papo, de que a gente só dá valor quando perde? Então, pela primeira vez entendi o que isso significa. A sorte é que não precisou ser a minha. Querem saber? Deixa pra lá, isso ainda me incomoda...

Passado o susto, de repente estou de pé! Preocupado, corro pelo posto e descubro que o meu carro está destruído. Tão inesperado quanto o despertar inoportuno, brotando de todos os pontos possíveis as bestas novamente dão o ar da graça e tentam mais uma investida! O que vou fazer? O de sempre, e assim dei um pinote, enquanto abandonava a merda do machado para trás. O corpo não reagia como a cabeça ordenava e completamente esgotado não consegui escapar da primeira unhada. Que dor insuportável! O desgraçado rasgou meu rosto, enquanto o outro, muito bem escondido por sinal, cravou os dentes no meu braço! Tentando manter distância, me esquivei da próxima mordida e com ombro luxado derrubei o miserável em feitio de barreira. Precisava fugir, entretanto não dava mais tempo. Eles eram mais de cem! Desesperado, busquei o impossível ao lançar-me pelo mesmo buraco que fugi da loja. Lá dentro, perdendo o equilíbrio caí estatelado próximo ao balcão, e infelizmente ao tentar me recompor dei de cara com o cretino de olhos vermelhos! É impossível! Eu cortei a garganta desse viado! Tentei fugir outra vez e me levantando catei cavaco até bater contra uma prateleira! Eles me cercaram! Ali, tive certeza que morreria, foi quando acordei. Não é horrível ter um pesadelo desses num mundo “normal”, imaginem estando na merda que me meti?

A princípio pensei que tudo havia sido um sonho, mas ao abrir os olhos ainda estava largado sobre o asfalto. Se não me engano, eu dormi por umas oito horas e só voltei à realidade porque o chão estava escaldante. Uma bosta e tudo ardia! Logo me senti um camarão grande, gordo e tostado. Queimaduras a parte, o machado que tanto me ajudou, imponente repousava sua vermelhidão sobre o mesmo asfalto. Caceta! Que briga feia foi aquela de ontem! Ainda dava pra ver os corpos e seus pedaços esplahados pelo posto. Verdade verdadeira, eu jamais poderia reclamar, afinal, depois que caí duro no inferno, por alguma cagada épica eu acordei vivo. Acordei vivo? Que engraçado, é como entrar pra dentro e sair pra fora. Por acaso alguém já acordou morto? Bom, olhando a situação talvez sim e falando nisso, graças a Deus nenhum sinal daquelas pragas. É rapaziada, pelo visto eles não são tão estúpidos como parecem ser, já que ao darem de frente comigo, optaram pelo mais sábio, vazar de vez. Estão vendo? Não é a toa que me acho! Até as crias do diabo tem medo do cara aqui. Sem sacanagem, em alguns momentos me sinto um ator hollywoodiano.

Mudando de assunto completamente, que calor era aquele? O sol da área rural é de rachar e nessa hora dei conta que o meu carro não tinha a bosta de um ar-condicionado. Precisava tomar logo uma providência e foi assim que decidi dar outra varredura. O receio tornou-se um pré-requisito, só que dessa vez foi em vão. Sem maiores problemas achei uma caminhonete e tratei de armar uma ligação direta. Boa escolha por sinal, tinha a carcaça forte, além de GPS e várias outras frescalhadas! Pena que não sei mexer bem nessas merdas eletrônicas, mas mesmo assim, com o pouco que eu sabia consegui descobri o meu próximo destino. Modernidade da porra! Tudo ficou mais fácil né? E rumo a Jundiaí, gastaria umas quatro horas, sendo que a próxima parada seria em Jaboticabal. Uma parada obrigatória e que por sinal viria a ser uma foda mal dada. Se naquele fim de mundo que é Monte Alto, a situação já foi sinistra, era praticamente improvável se animar com a possibilidade de entrar numa cidade com quase o dobro de habitantes! É rapaziada, ainda faltava chão pra chegar, mas enquanto isso, imaginem a merda que foi quando passei por Araraquara?

Sem sinal das autoridades, a região estava largada ao esmero. Quanto à estrada por ora não posso reclamar muito, já que pela primeira vez na vida comprovei algo de útil feito pelo o governo do estado. Em meio a tanto sofrimento, finalmente eu me adaptava àquela realidade e de caminhonete na auto-estrada SP-305, o único problema que enfrentei foi à necessidade de desviar dos carros abandonados! Ainda que digam sobre a burrice dos contaminados, depois de vê-los desviando do meu caminho, voltei a questionar essa afirmação. Chicletes de asfalto a parte, demorei meia hora pra chegar a Jaboticabal, e por lá, logo que passei base imediações do açougue público, fui obrigado reduzir a velocidade. De longe, Os gritos invadiam as ruas em direção a uma praça onde as arvores eram bem altas. Seguindo o rugido daqueles seres, sobre a copa de uma arvore enorme encontrei um corpo dependurado em meio aos galhos. Num primeiro momento, até pensei que estava morto, só que observando melhor pude perceber que se tratava de um moleque, que desesperado fugia das feras, trepando de galho em galho. Juro que pensei em resgatá-lo, só que ao bater o olho no número de bestas que o cercavam, preferi não me meter. Covarde? Cada um pensa o que quiser... Mas temos de convir, se antes não me importava com ninguém, porque faria isso agora? Parceiros, o mundo mudou, mas eu não e evitando o suicídio altruísta, tentei sumir do mapa, quando travando a porra da minha perna bateu o peso na consciência. Que merda! Depois de matar gente pra caralho, virei bom samaritano? Em outros tempos ficaria louco com uma bosta dessas, só que nesse fim de mundo nada deveria ser levado a sério.

Ao passo que tateava os pedais, de repente meu lado humano sobressaiu e sem involuntariamente ronquei o motor o mais alto que pude! Talvez a merda do moleque nem tenha percebido, mas com aquele simples gesto atraí a atenção do máximo de bestas possível. Bom! O meu serviço já estava feito, e tirando o veículo do ponto morto disparei pelas ruas a dentro. Vocês podem achar engraçado, porque até eu achei! Pelo espelho não me reconhecia, até que me descontaminando dos bons sentimentos fiz um “strike” em quatro vagabundos. Porra, a cena foi de cinema! Méritos do carro, que a cada osso esmagado me deixava mais a vontade. Não nego, me diverti maltratando aquela raça e teve vezes que até mudei a rota pra dar uma portada em cheio na cara de um filho da puta. Pode parecer ou talvez seja babaquice, mas e daí? Quem ta na chuva é pra se molhar e em meio à guerra, o único doce é bala!

Em Jaboticabal a coisa estava pior do eu previa. A cidade inteira havia sido tomada, e tirando o garoto da árvore, não apresentava um sinal de sobreviventes. Qualquer cidadão em sã consciência pegaria a rodovia pra chegar a Araraquara, no entanto a intuição me perturbava. É foda, esse lance de sexto sentido não é só coisa de mulher e por isso dei mais uma volta pelas redondezas. Pra quê fiz isso? Quando passei perto do mercado, fui recebido por um grupo com mais de cinqüenta bestas. Agindo rápido, tentei dar meia volta, contudo surgindo dos becos, mais vinte desalmados se atiraram contra a porta do carona. Naquele instante pensei que daria merda. As rodas saíram do chão e o carro ameaçava tombar. Lentamente a carroceria inclinou e preso dentro daquela bosta, só me restava torcer! Porra, depois de tanta luta, era sério que eu morreria assim? Meu Deus! Não sobraria nada pra contar história! Sorte minha que só foi um susto! Um susto sem fim, já que a manada continuou atrás do pára-choque, enquanto eu esticava pra onde o nariz apontou. Pelo que pude constatar Jaboticabal fora arrasada! A cidade havia sido tragada pela peste e os que ficaram, perderam suas almas e identidades. Num surto inexplicável deixaram de ser humanos e se transformaram em caçadores de vidas, assim como eu. O importante é que os vadios comeram poeira e pelo retrovisor, depois de uns dez minutos em fuga, vi uma cacetada de demônios ficarem para trás! O percurso foi um dos piores que encarei. As ruas eram estreitas e até por uma loja de armas fui obrigado a passar direto, afinal na terra morta só sobrevivem os mais rápidos...

( Texto participante da Antologia Terra Morta, Original Tiago Toy)

Continua...

Vittório Torry
Enviado por Vittório Torry em 04/02/2012
Reeditado em 17/04/2012
Código do texto: T3479841
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