TERRA MORTA - ESTRADA SP 305 - CAPÍTULO III
Puta que pariu! O que aconteceu? Há duas horas a cidade estava normal! Em busca de notícias peguei meu celular, mas ao tentar falar com a minha família, vejo a mensagem no leitor: “Somente emergência” Porra! Se aquilo não era uma emergência, o que é então? Cansado, botei em cheque a habilidade de piloto de fuga e ainda usando o telefone desviei das carcaças espalhadas pela pista, antes de esticar em linha reta. Pelo que me lembro esse foi o meu último instante de paz. Lembra quando nos dizem, que um dia tudo o que a gente faz o destino cobra em dobro? Então, toma vagabundo!
De saco cheio da calmaria dos mortos, atrás de notícias liguei o rádio e mais uma vez fiquei a ver navios. Caceta de antena de merda! Irritado, sem dó descontei no acelerador! Saí rasgando as ruas da cidade e pela rodovia joguei o farol em busca de alguém que pudesse me explicar o que havia acontecido. Nenhuma alma viva para contar história, então sem tempo a perder varei noutra linha reta. Quando as coisas pareciam ruins, mostrando que tudo pode ficar pior o tempo começou a virar e ainda faltavam mais de quatro horas para chegar até a mansão que estou agora. Deveria fazer de tudo para evitar a chuva, já que na pista molhada seria brabo me livrar de qualquer imprevisto. Éh parceiros! O apocalipse chegou e minha família estava sozinha, sem ninguém para protegê-los. No fundo até queria voltar pra casa e ajudá-los, mas nessa altura do campeonato não serviria de nada. Esperança nunca foi o meu forte e pelo andar da carruagem, tive a certeza que só encontraria seus restos ou pior... Quem sabe eu tivesse de matá-los? Agi como um covarde e talvez por isso esteja aqui, preso num banheiro de empregada! Podem achar o quiser, mas naquele momento concluí que ser mais inteligente por as emoções de lado e partir pra mansão. Afinal, aqui eu teria um helicóptero, armas e mais de quinze soldados pra me ajudar. Mais um dos vários enganos que cometi neste dia.
Sério... Quanto mais eu precisava de sorte, mais essa vadia fugia de mim. O sereno num piscar de olhos virou garoa, dificultando e muito que eu dirigisse. O que fazer? Ficar na pista e dar de cara com um imprevisto ou entrar num bairro repleto de aberrações e buscar um lugar seguro? As duvidas me deixavam louco, quando por intervenção divina passei ao lado de um templo evangélico. Porra! De cara disse: “Muito clichê, deve ter merda lá dentro.” Assim, com isso em mente dei uma volta e de longe percebei que o local me parecia intacto em comparação as demais construções. Não nego, o ambiente parecia aconchegante e também pesou o fato de ter me deixado levar pela curiosidade, enfim encostei. Mesmo não acreditando no que o livro de capa preta dizia, talvez essa fosse à melhor hora pra ouvir uma palavra de conforto. Até porque, se a vida sumiu quem sabe Deus voltasse? Bom, sem muitas opções segui em frente e para espantar-me o lugar estava aberto. Em momento algum saí do carro, se desse mole, eu meteria o carro lá dentro.
As rodas destruíam tudo que pairava pelo solo e o silencia fazia-me o favor de amplificar os ruídos. Avancei mais um pouco e nada. Um pio sequer. Lá só havia a escuridão. Nessa hora dei uma balançada, algo parecia me atrair, então seduzido pelo desconhecido embiquei o carro e lancei o farol. Aos poucos as coisas iam tomando forma. Vi as cadeiras, uma espécie de tablado e perdido entre os vultos enxerguei algumas pessoas, que na mesma posição ignoravam a força dos faróis. Foi nessa hora, que me pegando de surpresa, enquanto ainda me acostumava com a penumbra, eis que do alto do templo uma vadia se esborracha em cima do meu capô. No susto, com o arrepio consumindo até os pelos mais íntimos do corpo, errei a merda dos pedais e morri com o carro. Cara a cara com aquele ser, para fechar o caixão de vez, a puta de cara amassada deu um berro estridente e voou com a boca escancarada ao ataque!
Cacete, na hora do desespero girei a chave com tanta força que pensei tê-la quebrado, só que para minha felicidade o carro deu partida. Não pensei duas vezes e ao passo que a vadia dava cabeçada no meu pára-brisa, engatei a ré e tentei sumir do mapa. Parecia sacanagem do destino! Aquela cretina era tão determinada, que na base da cabeçada já estava no lado de dentro do veículo. Em breve ela chegaria perto, e com poucas opções ao alcance, naquele exato momento apostei as minhas fichas na idéia menos provável! Sabe galera... Viver na Terra Morta é isso! Apostar tudo, sem ter noção do que acontecerá. Assim sendo, cruzando os dedos dei outro cavalo de pau e como imaginei, o vidro preso no pescoço da desgraçada virou uma espécie de guilhotina! Quando ela foi projetada para o outro lado, pisei na ré, voilá. Quanto sangue! O corpo da filha da puta foi catapultado e rolando pelo asfalto se esborrachou na fachada do templo, enquanto a cabeça sem vida, de boca arregaçada tombou pelo painel e caiu no meu colo. Não vou mentir, por um triz quase me caguei, contudo ao me deparar com o crânio daquela besta em cima do meu instrumento, não pude deixar de rir.
Se eu pudesse voltar atrás não pisaria naquela droga por nada. Procurei a salvação e perdi tempo à toa! O máximo que consegui foi um susto da porra, o pára-brisa quebrado e uma chuva da porra nos cornos. O que fazer? Ficar por ali? Never! Voltei pra pista com tudo, no entanto mesmo com a visibilidade ficou péssima, ainda assustado e cheio de adrenalina resolvi pisar fundo. E foi aí, numa dessas esticadas da vida, que em alta velocidade acabei fazendo o que já havia imaginado. É foda... Num cruzamento qualquer, levado pelo desespero passei varado. Juro que tentei parar, só que não deu tempo e sem querer joguei uns três pro alto. Olha! Se antes estavam mortos, eu não sei, porém quando saí do carro não me restaram mais dúvidas. No saldo final, dois idosos e algo que não consegui discernir. Porra! Francamente, depois de atropelá-los, logo me bateu uma preocupação, mas com o vidro arregaçado. Vacilei feio e para dar seqüência aos erros, me deixei levar pela emoção. Com raiva da chuva que eu ia tomar, arranquei o que sobrou do pára-brisa e possuído por maus pensamentos peguei a doze no banco de trás. Dane-se! Eu só queria dar uma conferida nos “culpados” e não nego, quando fico sem a farinha tem hora que perco a cabeça! Imaginem então num mundo desses? Porra! Se existia algo de bom por aqui, é que no inferno ao menos eu tinha a oportunidade de fazer um estrago sem maiores conseqüências. Estão vendo? Sempre existem os dois lados da moeda, é tudo uma questão de observação.
Ahhh parceiro... Mal saí do carro e uma quenga sexagenária levantou! A velha parecia um “z”, e toda torta rosnava para mim. Menos com menos só dá mais na matemática, então sem pena fui atrás dela. Bom, como nunca tive medo de bater de frente com a morte, era hora da diversão! E com o álibi da sobrevivência, fiz questão de cair dentro da ala geriátrica. A princípio achei a maldita bem pretensiosa, já que num surto de confiança, ela achou que me assustaria ao esboçar uma corrida. Faz-me rir! Se nem quando estava viva ela conseguia ser rápida, imagine o que faria depois de ser atropelada? Muito! Infelizmente esse foi à resposta. E foi nesse deslize, que num instante ela quase abocanhou meu peito! A sorte é que eu sou ligado e como já estava ciente do perigo, só deu tempo dela dar uma fungada, antes de ser estourada. Cacete, como ri! Jamais vou me esquecer disso! Foi a primeira vez que vi uma cabeça sumir e olha que já cometi muita barbaridade. Não é brincadeira, tirando a solidão até que esse mundo prometia ser divertido, afinal pela primeira vez na vida pude ser eu mesmo! Não que o meu sonho fosse sair matando todo mundo, mas com uma oportunidade dessas porque não ir às forras? Olhando bem, até que não era um mundo para se jogar fora! Meu emprego havia ido pelo ralo, e daí? Duvido que exista qualquer outro, ou até dinheiro. Enfim o sistema foi derrubado e eu vivi pra ver isso!
Pensando bem, é nessa hora que eu queria ver a cara de bunda dos banqueiros! Foda-se o dinheiro! Peguem seus bilhões, façam trouxas e enfiem no rabo. O que antes garantia a moral, depois do apocalipse não passa de um pedaço de papel colorido, sem utilidade. Chupem seus merdas! Como é bom extravasar! Dei mais dois tiros e enfim garanti a calma. Bem mais relaxado pelo torpor da pólvora, segui mexendo no rádio atrás de notícias. Nada novamente! Então segui por dois quilômetros, mas infelizmente só vi mato e mais mato! Por razões como essa que me culpo por ser um excluído digital, que nem sabe usar um celular com internet. Falando nisso! Esse celular tem uma bateria boa pra caramba. As ligações eu não tentei mais, afinal, se num mundo normal as operadoras não trabalhavam, o que fariam depois do fim do mundo? Voltando para as vantagens e desvantagens do apocalipse. Acabei de lembrar-me de outra coisa boa! Tanque cheio sem gastar um puto! E com isso na cabeça, ao ver o primeiro posto vazio, parei o carro e segui em direção a bomba, entretanto devido à fome mudei o rumo e dei mais alguns passos com a doze em mãos. Na guerra, qualquer soldado raso sabe que jamais devemos mudar o nosso percurso independente das adversidades, no entanto sem comer a horas, fui levado pelo estomago até a loja de conveniência.
Chegando por lá, primeiro sondei a área, depois abri a porta e vi que os geradores de energia ainda funcionavam. Finalmente pensei que havia surgido um lampejo de sorte! A princípio as prateleiras de tão organizadas, me davam a falsa idéia de que nada havia acontecido. Talvez a notícia houvesse se espalhado mais que a própria praga em si. Bom... Tudo era possível, e um tanto mais relaxado procurei pelos petiscos. Nada de útil, para um diabético. Resolvi dar outra sondada, quando ao fim da loja, por trás de um balcão dei de cara com dois corpos destroçados. A situação poderia ficar séria a qualquer momento, mas ainda não havia visto nenhum sinal dos vadios desalmados. Até dava tempo pra fazer um saque bem feito, só que o lance era ficar ligado, principalmente aos imprevistos à porta de entrada. Com um olho no peixe e outro no gato, cauteloso peguei um “Pack” de garrafas d’água, além de alguns pacotes de biscoitos de milho. Coisas simples, que ao menos dariam condições de chegar num mercado maior. Depois dos itens de necessidade básica, ganhando confiança na área inóspita, ainda vasculhando as prateleiras mesmo com a sacola cheia, finalmente achei o bendito maço de cigarros. A marca não era das melhores, mas o que eu poderia fazer? Aquele lixo não dava a sensação e muito menos o gosto de um cigarro de verdade, mas aproveitando o pouco prazer que aquilo me dava, dei mais uma olhada atrás de outros vícios, só que nada do estimado uísque. Acho que nem nessas horas os nossos vícios são perdidos. E por curiosidade, testando a minha teoria abri a caixa-registradora e dei de cara com o vácuo. Cacete, até no fim do mundo tem gente que rouba! Sério, quem leva dinheiro numa hora dessas? Talvez um zumbi-judeu...
Deixando a sacola de suprimentos no chão, encostei-me à caixa registradora e resolvi fumar mais um pouco. Um cigarro é um cigarro, até mesmo quando vagabundo. Saudade daquilo! O torpor tomava conta das minhas ações e a nicotina, gostosa que só ela, quase me atraiçoou quando por pouco quase deixei passar batida a invasão de um vulto passando pela porta. De imediato, focado na sobrevivência apaguei o cigarro e me escondi dentre as prateleiras, aguardando o melhor momento para atacá-lo. A princípio nada além de um susto, já que o vadio não passava de um sujeito, praticamente inofensivo. Tirando a monstruosidade dos olhos vermelho sangue, ele usava aliança na mão esquerda e um vistoso colar com três letras desconexas. Deveria ser outro pai de família, que como tantos outros, também foram beijados pela praga. Cortando a reflexão, me censurei naquele momento de fraqueza. Deveria deixar tais sentimentos de lado, afinal, cada praga tinha a sua história e caso não quisesse ficar igual a eles, deveria exterminá-los.
Para minha sorte, facilitando o trabalho sujo, além de manso o verme também era lento, então mantendo a calma e abusando dos passos curtos, evitei chamar a atenção dos demais que caminhavam pela estrada. Como diz a cartilha da sobrevivência, meu golpe deveria ser rápido e limpo, por isso pus a doze nas costas e catei uma faca largada sobre o balcão da lanchonete. Mantive-me em silêncio, sorrateiro me aproximei o máximo que pude e num golpe prático lambi o pescoço dele com a lâmina. Me senti o Rambo do interior paulistano! O foda é que voou podridão para todos os lados! A artéria do maldito ainda funcionava e o sangue negro num esguiche improvável bateu sobre o meu rosto. Foi aí que vacilei outra vez! Se no mundo normal eu contava os erros numa mão só, neste apocalipse desandei a fazer merda. Apesar de não querer aceitar, havia me deixado levar pela pressão e com medo de me tornar um deles fechei os olhos e enfiei a cara dentro da pia do banheiro. Dali pra frente eu não sabia o que estava por vir. Estaria fadado a comer gente? Bom, só tempo pra dizer. O importante é que depois da facada, o saldo era de um monstro a menos!
De rosto lavado, mal pude comemorar, pois os ruídos logo viraram gritos e as demais bestas, parecendo sentir meu cheiro, partiram pro ataque. Graças a deus sou um cara safo e por isso, vendo que não tinha nada a perder, sem medo de ser feliz atravessei a vidraça. Alguns cortes, uma luxação no ombro, mas em hipótese alguma cogitei parar de correr! Os malditos não cansavam e mantendo a velocidade continuaram a perseguição pelo quarteirão inteiro. Já estava na segunda volta! Sorte que os imbecis não raciocinavam e após alguns minutos, agradeci aos céus por vê-los se afastarem do carro. Era naquela hora ou nunca, então, animado pela chance de sair inteiro lembro que dei mais um pique, quando no ápice do esforço eis que uma merda rastejante agarra o meu pé e derruba metade das coisas que apanhei. Puta que pariu! Cara! Fiquei tão puto que pensei em voltar e fazer da cabeça dele um patê, mas seria estupidez, porque mesmo catando cavaco ainda consegui manter o pique da fuga. Apesar do cansaço estava caminhando para terceira volta, e bombardeando meu cérebro, vinha a pergunta: Atirar ou não? Puta merda, que dúvida cruel! A doze estava louca pra cantar e eu sabia que um tiro só daria conta deles, no entanto, pesando contra mim, existia a possibilidade da explosão chamar a atenção dos restantes! O que fazer? E foi assim, perdido entre dúvidas me deparei com o pior. O que era a salvação virou uma sucursal do inferno, visto que na última volta meu carro havia sido rodeado novamente e as demais bestas me aguardavam vieram para o banquete. Será que eles pensam?
( Texto participante da Antologia Terra Morta, Original Tiago Toy)
Continua...