TERRA MORTA - MONTE ALTO (SP) - CAPÍTULO II

Flexiono os braços, a cada pingo de suor me pergunto o porquê de ser tão gordo. A censura surge, e m e eximindo da culpa, grito “Olho grande desgraçado!”. Conselho de gordo... Comer por gula é burrice, entretanto temos de convir, que para um sujeito que não acreditava no amanhã, estou inteiraço. “Pára de drama e levanta daí sua bichona gorda!” Ao menos era assim que meus amigos diriam. É claro, antes de serem devorados! Por sinal, um deles está me olhando e com um grunhido estranho, parece me dizer algo. Caguei pra você! Foi mal aí Leozão, mas não entendo porra nenhuma e ainda por cima, olhar pra tua cara não me anima! Então, mete o pé daqui, senão vou usar a última bala na sua testa.

Foda-se esse segurança de merda! Vamos lá senhor! Dê-me só mais um pouco de ânimo! Só essa levantada... Consegui! Há há! Se foderam babacas! Para vocês, que estão me ouvindo, dei o primeiro passo para a virada! Botei a mão na mesa, enquanto com a outra vou puxando a cortina... Cacete, é um milagre! Parece que estou flutuando! É melhor não comemorar, porque agora é a parte mais braba, vou tentar distribuir o peso do corpo. Cacetada como é pesado! Gente! Estou quase de pé! Ahhhhhhh!!! Puta que pariu!! Minha cara! Eu sou burro pra caralho! Quem foi que inventou a merda da esperança? Agora to com os cornos no chão. Três tentativas, um nariz quebrado e mais sangue desperdiçado.

Filosofia a parte, nunca senti o chão tão perto do meu coração e enquanto rastejo, ao olhar para trás vejo sobre o piso um tapete vermelho. Puta que pariu! Quem está podre sou eu! Pelo espelho posso ver meus lábios azularem e o tom da pele atingir a cor gelo. Talvez eu morra em horas. Quem sabe num dia ou em segundos, caso a tranca não suporte as pancadas ensandecidas. Na boa, não quero morrer no dente! Senhor, isso é injustiça! Nunca torturei ninguém, então trate de mudar esses planos! Se existe alguma justiça divina, você podem fazer isso comigo. O problema é: Será que essa porra existe? Ou a medida que penso falar com deus, somente desabafo com a merda de um celular quase sem bateria? Bom, o máximo que posso fazer é torcer para que exista, já que aqueles miseráveis não param de sacudir a porta. Bando de viado! O ranger das correntes me irrita muito, mas fazer o que? Chamar a polícia? Reclamar com os belzebus canibais? Rezar? Ou simplesmente dar seqüência ao monólogo, torcendo para que um dia alguém descubra essa bosta de aparelho? Já que estou fodido e mal pago, vou ficar com última opção. Perdão pelos palavrões, só que um camarada a beira da morte, em hipótese alguma consegue manter a cabeça no lugar.

Meu tempo é curto, por isso não busco explicação. Só me lembro que esse inferno teve início numa noite qualquer e sem aviso as pragas partiram para o ataque. Pode parecer simplório ou até clichê, mas o primeiro contato que tive foi na saída de um serviço no cemitério público da cidade. A névoa dominava o ambiente, antes esbranquiçado pela luz da lua. Eram duas da manhã e munido de uma pá, profanando o solo sagrado procurava pela cova certa para desovar o cretino, que naquele exato momento descansava dentro do porta-malas. O tempo passou sem trégua, quando caminhando dentre as covas rasas notei que já havia perdido por volta de uma hora. Nesse momento, sem maiores indicações resolvi tentar a sorte em outro setor e quando estava me aproximando do que queria, resolvi correr logo após escutar algumas colisões. A princípio não fazia a menor idéia do que ocorria lá fora. O meu ver... Melhor, ao meu escutar parecia a droga de um engavetamento e por isso, evitando maiores surpresas das autoridades tratei de agilizar o serviço. Independente da barulheira ali estava à cova recém cavada, bonita e com aquele cheiro singular de terra molhada. O famoso serviço do dia seguinte, que num momento de necessidade tornava-se uma mão na roda, afinal quem vai procurar um defunto sob o caixão de outro?

As coisas estavam seguindo os conformes e em cinco minutos eu daria conta do serviço. Retomando a tranqüilidade enquanto vigiava meu carro à distância, ao passo que mais fundo cavava, meus lábios assoviavam Smoke On The Water como se nada estivesse acontecendo. A prática leva a perfeição, não é isso que dizem? Nessa hora o uísque vagabundo fez diferença e pouco se importando com a lentidão dos meus reflexos os primeiros raios de sol destruiriam o álibi da noite. Superando a embriaguez, evitando dar sopa pro azar tratei de acabar o buraco e sumir com o infeliz, no entanto ao abrir o porta-malas o cretino escapuliu num pulo de gato. Graças a Deus foi precavido! Ele até que foi safo, mas que cidadão em sã consciência imaginaria que logo abaixo estaria a sua própria cova? Pra mim foi um alívio, pois com a arma em mãos, dei uma encarada no maldito e sem cerimônias despachei-o antes perdesse a hombridade. Na boa, eu era genial quando queria. Pena que decidi ser vagabundo.

Finalmente o sublinhei de terra. Um serviço a menos nas costas, mais cinco mil na conta e outro trouxa no saco. Ou na vala? Tanto faz. O importante é que o alvo estava eliminado, apenas isso. Ele merecia morrer? Aí já são outros quinhentos. Nunca me perguntei sobre o passado das vítimas ou que faziam. Evitava qualquer informação que pudesse atrapalhar o desempenho e além do mais, não eram da minha conta os julgamentos, e sim as execuções. Podem achar que sou um bom filho da puta, um assassino desalmado e quem sabe um mostro. Realmente o sou, só mesmo gostando de ver o brilho dos olhos se apagando, após o nascimento dos meus filhos percebi que essa não era a vida que eu queria pra mim. Talvez eu pudesse fazer qualquer outra coisa da vida, no entanto me vi sem opções, ao menos naquela época em que comecei.

Eu sei que estou errado e por isso, fugindo de conflitos desnecessários evitava pensar sobre o meu trabalho. Apenas ia lá, deitava o sujeito e abstraia. Só que tudo na vida tem um preço e a coisa infelizmente não é tão simples como parecem ser. No meu caso, acabei sozinho. Na ficção o carinha tira onda, come as melhores mulheres e sempre anda de óculos escuros, contudo na realidade o lance é completamente diferente. Nós somos fantasmas, sem endereço físico e família. O nosso dever é ser imperceptível, e assim vivi trinta anos fingindo ser corretor imobiliário. Sequer a minha esposa sabia sobre a minha profissão, afinal, seria proteção pra mim e ela mesma. Imaginem como eu contaria isso pra minha família. “Oi querida, sou matador de aluguel! Uma profissão não tão digna quanto as demais, todavia fundamental para que o mundo não se entupa de gente.” Ahhh. Como eu fui inocente... Mas já foi, certo? Além do mais, o que interessa a vocês é como e quando começou essa putaria toda. Retomando o raciocínio, depois que cuidei da encomenda, fiz questão de expulsar o álcool que existia na minha bexiga bem na cova do lado, quando ouvi um barulho na folhagem. Logo pensei: “Cabeça dura do caralho, nem pra morrer esse imprestável serve!” E com a pistola na mão fui dá um confere no presunto. Nada! Absolutamente nada! A terra estava na mesma posição, contudo eu tinha a certeza de ter ouvido algo, por isso ainda cismado encaixei outra vez o silenciador e meti mais três tiros na direção do maldito. Nem por milagre ele se levantaria, e realmente ele jamais levantou! Uma pena que não pude dizer o mesmo do carinha que descansava ao lado, que repleto de urina surgiu por detrás da cova vizinha e pulou sobre mim.

Porra meus amigos! Eu sei que é um crime mijar na cabeça de um trabalhador, mas em que mundo, o coveiro cochila atrás de uma lápide? Na hora até tentei evitar o pior. De cara puxei o “ferro” e mostrei quem manda, no entanto aquele bêbado, louco que só ele pouco se lixou pra morte e partiu com tudo pra cima de mim. Uma atitude estúpida, pois me aproveitando da falta de coordenação motora daquele traste, me esquivei de um soco e no contra-ataque soltei brasa na barriga dele. O disparo foi perfeito, só que para minha surpresa, invés de cair o maldito reagiu com uma cabeçada no meu tronco! De imediato ambos caímos, minha arma sumiu pelo matagal e o lunático, rugindo como um leão me desceu o sarrafo! Tentei de tudo! Dei telefone, dedada no olho e até apertei-lhe as bolas, só que o animal não parava de me atacar! Então, foi aí que percebi. Aquilo não poderia ser humano! O desgraçado cheirava a carniça e nesse devaneio foi aí que vacilei... Quando a boca podre ganhou espaço e num instante chegou a centímetros da minha cara.

Que hálito dos infernos! O cretino não tinha nem mais uma língua humana, seus olhos eram cinzentos e saliva escura pingava sobre a minha bochecha. Nessa hora, o afastando pelo pescoço, veio à tona todos os filmes de terror que assisti quando criança. Época boa, que eu era inocente e ainda me borrava com medo dos mortos. Coisas de moleque, que distante da realidade sequer imaginaria que o maior dos nossos problemas são os vivos. Ganhando terreno, o líquido putrefato continuou a escorrer pela minha cara, enquanto o diabo se aproximava! Fazia força, mas ele não parava de se aproximar, e no instante que senti aquela língua arroxeada encostar-se na ponta do meu nariz, tive que dar um jeito! Sem pensar duas vezes meti-lhe a sola no tronco e o arremessei por cima de mim. Desarmado e sem tempo a perder, tive que cair no braço! Ahhh meu irmão, antes mesmo dele cogitar em levantar, dei um pinote e soltei dois coladões dentro dos seus cornos. Que porrada! O último golpe então... Puta que pariu! Com certeza foi o melhor, já que num passe de mágica fiz o nariz do vadio sumir. Na boa... Quando eu conto, até parece que acabou né?

O desgraçado nem se mexia mais, enquanto pelo seu rosto escorria algo pastoso. Nesse momento achei que já havia dado números finais, porém quando fui dar o pisão de misericórdia, num erro de cálculos dei brecha pro desgraçado abocanhar meu tornozelo! Fodeu! Logo pensei: “Virei num zumbi!” Afinal, nos filmes, quem é mordido também se transforma, certo? Mas querem saber do melhor? Sou muito cagão! Acreditem de quiser, mas o miserável que não tinha dentes! É, é isso mesmo! Foi nessa hora que agradeci a oportunidade de ter sangue frio. Se fosse outro, sem dúvidas estaria desesperado, gritando por Deus ou até congelado de medo, mas porque eu estaria assim? Para um cara metido com gente da pesada, um bicho feio daquele não passava de um enfeite de halloween. Muitos devem se perguntar: “Como você não estranhou?” Porra é óbvio que estranhei, mas pra que fazer perguntas se eu posso simplesmente dá cabo dele?

Quem diria? Um cadáver querendo meu sangue? Porra, bem que eu queria estar sonhando, quando aquele bosta tentou outra dentada. Bicho feio da porra! Que alheio a tudo, vivendo de instinto abriu a boca novamente ao ataque, só que dessa vez, mais ligado puxei minha perna e por sorte acabei encontrando a arma! Depois disso as coisas andaram que foi uma maravilha! Só precisava de um clique para devolver o vagabundo para o buraco, e assim logo ao ouvir outros gemidos pela região, botei o cano embaixo da mandíbula dele e esparramei o que lhe restava de cérebro. Um tiro e tanto, que para piorando a situação, chamou a atenção dos demais desalmados, que debandando do matagal em grupo, deixaram os mitos dos filmes de terror para trás e em velocidade correram atrás de mim. Só que para minha sorte e azar deles, eu estava de carro.

O cagaço era tanto, que no meu rabo não passaria nem agulha com manteiga. Desta maneira, meti o pé na tábua! Aquilo que eu vi não era morto-vivo nem a cacete! Antes fosse! Parecia gente normal, mas sei lá... Possuída pelo diabo? Bem que aquele filme espanhol de terror me avisou! Por isso, sem dar tempo pro azar atravessei o cemitério que nem uma bala, deixando para trás uma trilha de corpos esmagados. Manobrando como louco destrocei algumas lápides, até que cansado daquela zona, criei uma nova curva e varei os portões em direção a via expressa! Me fudi outra vez! O lugar havia virado o inferno e o fogo era tanto, que dava pra ser visto há distância. Desviei de alguns motoristas desesperados e com o pé tateando o acelerador cheguei até um ônibus que havia derrapado. Uma fila de veículos destroçados lotava a minha vista e ali, com pesar, percebi que a oportunidade de pegar a SP 323 foi pro espaço! Cercado por transeuntes desesperados que batiam na lataria implorando por ajuda, pensei numa solução, e assim imediatamente liguei os faróis e descrente, pude perceber que naquele engavetamento, entre mortos e feridos, literalmente safaram-se todos. A cena foi forte até pra mim. Uma foda! E foi ali, perdido nos confins de São Paulo que descobri o canibalismo como o meu máximo! Só de lembrar me dá nervoso! Que merda foi aquela? Intragável, é o mínimo para descrever as tripas de alguém sendo mastigada entre os dentes de uma aberração sem pernas. Foda-se quem ficou pra trás! Acelerei mais ainda, dei um cavalo de pau e parti com tudo para o sentido oposto! Nunca havia perdido o controle dessa maneira e numa crise de ódio, gastei meu pente inteiro, furando além da carroceria, uma boa parte daquelas bestas que me perseguiam.

( Texto participante da Antologia Terra Morta, Original Tiago Toy)

(CONTINUA...)

Vittório Torry
Enviado por Vittório Torry em 30/01/2012
Reeditado em 17/04/2012
Código do texto: T3470526
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.