O Crime

Uma manhã de sábado, aquele corpo feminino, degolado, sobre uma cama de casal com lençóis macios, prontos a aconchegar o cadáver fresco que ali se encontrava. Mulher de pele morena, cabelos encaracolados e longos, busto empinado, não tanto pela posição que se encontrava, mais ainda assim majestosos, dando provas de sua solidez em vida. Nua, com a vulva recentemente depilada, as pernas bem torneadas eram um convite a percorrer com os olhos. A cena do crime,um quarto bem mobiliado, com decoração que não era luxuosa, mas de extremo bom gosto.

Naquela madrugada, encontrara aquela figura sedutora, sempre desejara possuí-la, nunca conseguindo realizar o desejo. Foram tantas investidas, sendo retribuídas com desdém. Uma paixão alucinante que se tornara ódio, fizera com que me dirigisse ao prédio, aguardando o horário que tinha por costume chegar de suas proveitosas noites. Aguardei ansioso, as mãos trêmulas, aproveitando-me do fato de sermos conhecidos, ao mesmo tempo utilizando minha condição patética como argumento de me fazer inofensivo. Com uma desculpa dramática, fui conduzido ao apartamento, onde armado com uma faca de cozinha, degolei o motivo de minha angústia, despindo esse corpo tão almejado, para contemplar as formas por mim intocadas. Agora sou um assassino.

Saímos naquela noite, para mais uma aventura em um bar conhecido. Encontramos alguns rapazes, companhias descartáveis, como o absorvente dessa menstruação que estou acometida. Bebemos e disparamos informações fúteis, apenas como forma de esvaziar a mente, depois de um dia de trabalho mesquinho, onde a necessidade de renda faz com que nos sujeitemos a algo desprazeroso. Convidada a adentrar o seu apartamento, ocorreu a revelação pela bebida, onde me tratara como lixo, rindo de meus modos, fazendo-se superior por seu currículo sexual. No momento de fúria alcoólica, brigamos e nos estapeamos, até derrubarmos aquela gaveta de talheres, a faca em sua mão reluzia. Sabia que seu olhar era assassino. Após desarmá-la, não hesitei, desferindo um golpe único e mortal, degolando a amiga de outrora e vadia de agora. Me tornei uma assassina.

Aguardava silencioso a proprietária daquele imóvel, Escondido, não desejava apenas um furto. Articulara uma crueldade que me faria poder ser essencialmente bom, pois só mesmo cumprindo um ato mau, poderia ser digno da bondade que tanto me atribuíam. Fui paciente, após romper a vigilância da portaria, desde cedo no prédio, confundindo com o vai e vem público que transita pelos corredores. Bastando aguardar em local apropriado, até o momento de menor circulação, onde exerci minhas técnicas de sigilo, me esgueirando à porta tão sonhada. Com perícia, adentrei o recinto. De madrugada, a chave girando acelerou meu coração. A porta mal havia se trancado, já imobilizava a vítima, com gesto de açougueiro, cortei a garganta daquela mulher majestosa. Sou bom porque me fiz mau enquanto assassino.

Aquela moradora esnobe, sempre passando com ar arrogante, menosprezando meu ser. Observava constantemente sua empáfia. A gota d’água, um dia que me fez lavar novamente toda a escadaria, apenas para demonstrar sua superioridade. Com a cópia das chaves, me posicionei dentro do quarto da belíssima criatura. Contemplei como se despia diante do espelho, o objetivo era apenas assustá-la. Quando me viu não gritou, mas demonstrou que iria tomar providências, indo direto ao telefone, com o dedo ríspido dizia que faria uma denúncia fatal. Sem perder tempo, me servi de uma faca posta sobre a bancada da pia da cozinha, desferindo um golpe que não a deixou completar a ligação. Sou um fugitivo assassino.

Cansada dessa vida cretina, desses ideais de estética, de homens com seus membros aflitos em busca de minhas entranhas. Chego em meu apartamento, depois de mais uma noite tediosa, retiro a roupa, tomo um banho de água quente, como me agrada fazer rotineiramente. Em uma espécie de ritual, contemplo meu corpo moreno, observo a flacidez que já denuncia estrias e celulites. Na cozinha encontro uma faca afiada, pelos atrativos culinários que me fazem atuar de forma criativa diante de receitas complexas. Não desejo mais cortar fatias de pães no café matinal, nem mesmo separar porções de bifes, faço-me de sacrifício, abrindo a jugular em um ato de desespero. Contemplo por poucos instantes o sangue fluir e tombo sobre os lençóis que já não me propiciam uma noite agradável de sono. Sou a assassina de mim mesma, uma suicida.

Levanto do túmulo, indignado com minha maldita prole. A herança que deixo ao mundo é nefasta. Ando por entre lápides, depois de revolver a terra. Encontro o caminho que me leva até o apartamento de minha filha. Deixei de ser espectro, pois me faço um zumbi que anda com corpo putrefato, invisível pela madrugada deserta. A força do reino de Hades me faz abrir as trancas, penetrar na alcova de minha cria. O terror invade-lhe a alma, ao se deparar com o pai apodrecido, a fala lhe falta. Nesse instante mudo, com a faca deixada sobre a mesa da cozinha, degolo a vítima com parentesco de sangue, não deixando ao mundo nem um resquício de minha existência. Ambos habitaremos nos confins do Inferno. Sou um cadáver assassino.

Venho a esse mundo de forma precoce, ainda nem nasci. Saio de um futuro possível em direção a um pretérito provável. Caminho por avenidas. Diante desse prédio que depois será apenas ruínas, consigo penetrar sem dificuldades os aposentos de minha mãe. Apareço antes dela ser penetrada, me privo do momento daquele parto, onde nasci para esse mundo em desgraça. Renego a infância corrompida, após o rompimento do laço umbilical, me fazendo de mensageiro da morte. Invado o quarto materno, contemplo a nudez jovial incestuosa, já armado de objeto cortante, rasgando a garganta dessa vil criatura que irá me parir, desejando que morra antes mesmo que eu nasça. Sou um passado assassino de um futuro inexistente.

De quatro procuro nas lixeiras dos becos, restos de alguma alimento consumível. Um cão que vira latas a procura de sua sobrevivência. Uma mulher, que sente-se menos animal do que meu estado, chuta-me com desprezo, esbravejando, dizendo aos passantes que não passo de um sarnento estúpido. Hoje é minha redenção, pois percorro com rapidez esse edifício, chegando ao destino de minha vingança canina. A porta fora encontrada entreaberta, o próprio porteiro se ausentara, o universo conspirando a meu favor, talvez sob os auspícios da estrela Canis Majoris. Encontro a cadela deitada nua, pulo sobre seu peito, rasgando-lhe o pescoço com minhas presas, cuspindo sobre os lençóis aquele sangue pegajoso, de uma imundície que não pode ser limpa. Agora sou um cão assassino e em breve sacrificado.