Apollyon
Caminhando sobre vermelhas paragens. É o sangue que germina o solo de morte que habita e governa. Fetos são pequenos frutos natimortos, espalhados em canteiros, onde se cultiva a agonia. Mães abortivas, com sua prole regurgitada, apresentando deformidades bizarras, rostos típicos de recipientes grosseiros que aparecem em filmes de terror. Estética dionisíaca, a bizarrice glorificada. Árvores com crianças estripadas penduradas. Os troncos são feitos de corpos crucificados, reproduzindo o messias torturado. Criatura em postura de cruz, os pés cravados no solo, expostos ao fogo que cai do céu como chuva de armagedom. Bocas abertas como no quadro “O Grito”, de Edvard Munch. Cavidade bucal que abriga insetos, que depositam seus ovos, parasitando a oralidade convidativa.
Do céu também chove sangue, como se Nut menstruasse. Os de boca aberta, recebem os pingos vermelhos, engolindo avidamente, num vampirismo doentio. Corpos apodrecem de forma vagarosa, enquanto alguns que rastejam, disputam pedaços de carne pútrida, para ser alimentarem com os restos de outros. Alguns divididos ao meio, tentam encontra o resto que foi separado, expondo vísceras. Mães choram dia e noite seus filhos mortos, como consolo, embalam pequenos cadáveres, em um balanço funéreo. Homens presos a estacas, são a todo instante esfaqueados por outros, com gana de assassinato, uma espécie de martírio eterno, como herança de Prometeu.
Apollyon caminha soberano em seu império, seus dedos passam pela fronte de um sujeito que atrevera-se a olhá-lo de soslaio. Arrancando os globos oculares, jogando-os ao solo feito boles de gude, que são capturadas e devoradas por seres rastejantes. Senta-se em seu trono, contempla o espetáculo da dor. Sua poltrona magnífica, feita de ossos, o tecido é carne humana, sempre algum agonizante preso de forma recente, pois os gritos são música para seus apurados tímpanos. Seu olhar atravessa as criaturas desafortunadas que cruzam seu campo de visão, dissecando o corpo da vítima até que se torne pó. Sempre faz seu desjejum com sacrifício. Trazem perante o grande rei, uma pobre criatura, que tem a cabeça partida, o cérebro engolido, bebendo direto do crânio que se faz taça, lançando o restante do corpo aos famintos que esperam.
Os pestilentos pedem a morte, mas continuam vivendo. Tomados por séries de aflições, atacam outros com intuito de reação com destino fatal. Mas são evitados. Sabem que sua função é perecer, lentamente. Corroídos até as entranhas. Os excrementos são absorvidos por quem os excreta. Homens sendo estuprados pelo ânus, assim como mulheres, sendo que as cavidades são regeneradas para novos atos penetrativos, com a mesma intensidade dolorosa do primeiro rompimento. Utilizam as peles dos mortos como vestimenta, cozendo indumentárias orgânicas, dando aspecto sinistro aos habitantes desse horror. Ratos corroem defuntos, feito hienas. A única risada que se escuta é a de Apollyon. Embora existam lunáticos, que vez ou outra, soltam uma gargalhada que mais parece choro.
Abutres sempre rondam, prontos para buscarem sua porção. Corvos disputam o especo aéreo, muitas vezes parados em locais estratégicos, agourando os sofredores. As habitações, assim como a mobília, são de engenharia fúnebre, carnes, ossos, assim conseguem uma propriedade. Mas basta um olhar do grande mestre, tudo se dissolve, os moradores passam a ser material para outras construções, reduzidos a pedaços. Lobos são cães guardiões, estraçalhando pessoas, vigiando territórios. Os uivos são o mais próximo de uma canção que se possa escutar. Suicidas dilaceram a própria carne, arrebentam a cabeça com violentas pancadas, mas são reconstituídos, privados da morte. A morte aqui é convidada, nem sempre é permitido que interfira, mas sempre que é solicitada, comparece com pontualidade, prestimosa.
Apollyon, estraçalha corpos, banhando-se com o sangue espirrado. Mantendo uma pilha considerável de corpos em putrefação, pois o odor é doce aroma. As moscas o servem por pura domesticação, já que estabelecera boa permuta com Belzebu. Indivíduos empalados, gemem a medida que a estaca os atravessa vagarosamente. Possui um colar com cabeças recém decapitadas, é possível ver as expressões de pânico. Sempre o adereço é renovado. Crianças mortas são penduradas em arame farpado. Uma espécie de varal dos horrores. O sexo é sempre homossexual, para evitar procriação. No término do ato, precisam travar batalha, um dos dois precisa ser sacrificado. O sobrevivente deve comer o morto, uma antropofagia pós libido.
Corações são arrancados do peito. Ainda pulsantes. Largados no solo. Feito semente. Muitos são enterrados, comidos por baixo da terra, enquanto a parte superior do corpo, será posteriormente devorada por lobos. Em certas épocas, alguns ceifeiros vão decapitando os campos, depois recolhendo as cabeças para enfeitar suas propriedades. Certas moradias, exibem crianças penduradas na fachada, feito uma guirlanda macabra. Uns estão sempre em chamas, no desespero em meio aos diversos graus de queimadura. Estacas e outras formas de lança, são deixadas com as pontas afrontando os habitantes, para que sejam rasgados constantemente, ao transitarem pelo lugar. Enforcados são expostos a cada quarteirão, dependurados em postes que determinam perímetros, sendo marcos para os moradores.
Os que estouraram a cabeça com arma de fogo, ficam a todo momento tentando recolher a massa encefálica que escorre. Por perto, é comum encontrar aves de rapinas para beliscarem migalhas do cérebro caído. O espelho do soberano, é um amontoado de olhos que foram arrancados, utilizando as pupilas como reflexo, todas arrumadas em uma porção de peles entrelaçadas. Sua palavra pode alterar toda a estrutura do território, por isso faz-se calado na maior parte do tempo, para contemplar ao máximo a disposição recente. Também ordena que alguns membros reúnam partes de defuntos, para montarem feito um quebra-cabeças, criando um Frankenstein que será animado, com intuito de montar um exército de seres reconstruídos. A estética da deformidade lhe agrada. Suas criaturas andróginas, que destrói e reconstrói.
Juntando todas as formas de grito dos que sofrem, faz sua ópera, em espetáculo trágico, que nunca chega ao último ato. Nos guetos que criara, correm pessoas desesperadas, com os intestinos expostos, tentando recolher as tripas que pendem. Só se beija nesse lugar, arrancando a língua do outro. Em reverência, os habitantes saúdam seu mestre carrasco, em uma adoração constante, que se estende até o fim dos tempos. Sabem que diante do pai da dor, não adianta pedir misericórdia, então solicitam mais sofrimento, para serem contemplados pelo poder do soberano. O clamor coletivo exalta:
— Hail Apollyon!