2 Horas da Manhã

— Que lugar é esse?

O sujeito anda numa rua deserta, as luzes dos prédios apagadas, apesar dos postes sem energia, algo ilumina seu caminho, como reprodução de luz em filmagem de cinema, uma espécie de refletor não percebido por quem assiste ao espetáculo. Olha para um beco, ainda mais sombrio que o restante em penumbra, algo chama a atenção dentro daquele lugar. Mesmo com receio, não deixa de se aproximar, sugado pelas trevas do mistério. Uma mão sai de dentro das sombras, uma faca apunhala seu estômago.

— Porque? Estou morrendo.

Cai naquele solo negro, o rosto colado ao chão empedrado, um último gemido sai em forma de súplica.

Acorda. Olha para o relógio, 2 horas da madrugada, tudo não passara de um sonho, o alívio de estar salvo. Um som vindo do prédio, parece uma voz a lhe chamar. Caminha um pouco hesitante, a mão sobre a barriga, ainda com a impressão do sonho. Abre a porta, as luzes se acendem automaticamente, ganha segurança, não está mais naquelas trevas. Passos vacilantes em direção as escadas no final do corredor, todas as outras portas num silêncio mórbido. Uma mão o puxa escada abaixo, entre gritos entrecortados, vai rolando, sentindo quebrar os ossos, só parando em uma curva onde o pescoço enverga, trauma cervical, já perdendo os sentidos.

Abre os olhos, o relógio na parede indica, que são 2 horas da manhã, um sonho dentro de outro sonho, menos mal. Resolve levantar e buscar um copo d’água. Abre a geladeira, a lufada gelada nos pés descalços, a golada de água que desce pela garganta. Resolve ir até a sacada de seu apartamento, observar a paisagem noturna. Todas aquelas luzes, tantos pontos luminosos que formam uma espécie de segundo céu noturno. Encosta no parapeito, olha pra baixo. Sente alguém pegando-o por trás, suspenso e lançado. Grita com toda a força dos pulmões. Rapidamente vê os andares passando, uma grande se aproximando, sente o estalar violento de ossos, os ferros retorcidos perfuram o peito, atravessam seu crânio, a dor é instantânea, rápida, morte que não espera.

Leva a mão ao peito, levanta de um salto, o rádio-relógio indica que são 2 horas de uma madrugada qualquer. Desiste de continuar deitado, tantos sonhos. Caminha pela casa, chega na ponta dos pés ao quarto das crianças, a esposa nem percebera sua inquietação, só virara para o lado ao levantar. O quintal quieto, caminha sob aquele céu sem estrelas, indo até o canil. A cena é grotesca, os dois cães mortos, um enforcado com a própria coleira, o outro morto a marteladas, o instrumento do crime ao lado como prova.

— Porque não ouvi os cães gritando? Morrer dessa forma?? Teriam dando algum alarde.

No momento seguinte se assusta.

— Pode estar dentro de casa com minha família.

Entra subitamente pela sala, subindo as escadas em disparada. Abre a porta do seu quarto. Sua esposa, deitada, imóvel, ao virá-la, o sangue que escorria da cabeça já ensopara o lençol. Antes mesmo de chorar, corre em direção ao quarto das crianças. Sua filha, tão pequena, também imóvel, ao suspender o corpo frágil, o sangue toma-lhe os braços. As lágrimas descem em abundância.

— Onde está meu filho? Não está no quarto.

A cama vazia, observa embaixo. Começa a procurar pela casa, chegando ao banheiro, o filho ajoelhado, encarando-o. Se joga no chão, abraça o filho com emoção. Ouve o som de um tiro. Ao se afastar, o garoto segura a arma que lhe atinge mortalmente. Apenas uma última pergunta consegue fazer.

— Por que?

O coração disparado, olha para o teto de uma barraca de camping, o relógio de pulso marca rigorosamente 2 horas de alguma manhã.

— Que pesadelos!! Preciso me acalmar, Hora de beber algo.

Abre uma garrafa de vodka, serve-se no próprio gargalo. Contempla as árvores, o cheiro de vegetação, insetos zunindo em seu ouvido direito. O som de um estalar de galhos quebrando, provavelmente a serem pisoteados. Alguém se aproxima. Se esconde atrás de uma árvore frondosa. Uma fisgada nas costas. Várias. Cai de joelho, a mão que segura a lâmina, segura-o pelos cabelos, corta-lhe a jugular.

Engasga tossindo, tenta se apoiar, não consegue se mexer. Olha para um monitor, no canto esquerdo da tela, o horário exposto mostra que são 2 horas. Tenta se orientar, se está de dia ou de noite. Vendo os outros pacientes dormindo, os enfermeiros ausentes, sabe que é de madrugada. Resolve levantar-se. Aquele cheiro de enfermaria o desagrada. Caminha até o banheiro, carregando o soro, desengonçado. Uma náusea forte lhe toma, vomitando no lavatório. Abre a torneira, usa as mãos como desentupidor, para tentar fazer escoar os pedaços de comida de seu vômito que entupiram o ralo. Volta para a maca, um médico entra no leito, provavelmente para fazer alguma avaliação. Injeta algo em seu soro. Os olhos embaçam, o braço formiga, a vista escurece de vez.

Escuta um som de chuva, acorda espantando. O corpo doendo, dormira sentado na cadeira do bar, a maioria dos clientes já deixaram o recinto, o relógio em cima do balcão indica 2 horas de um dia que acaba de começar. Um copo com resquício de conhaque parado na sua frente. Vai até o barman, paga a conta e sai. Chegando na rua, debaixo da chuva, tenta se abrigar. Vê uma marquise do outro lado da calçada, ao atravessar, é atropelado por um automóvel, lançado a metros de distância, a cabeça bate forte no meio fio da calçada, o sangue escorre com a água da chuva, enquanto pessoas correm para acudi-lo. Apaga.

— Olá! O senhor está dormindo?

— Hã!! Ah sim!

— Me desculpe, senhor. Pensei que estivesse se sentindo mal, o vôo logo chegará ao destino.

— Tudo bem. Agradeço a preocupação. Foi apenas um sonho ruim.

— Espero que não tenha problemas em voar?

— Não, não. Que horas são, por gentileza?

— 2 da madrugada.

— Obrigado.

— Senhor! Pode me acompanhar?

— Agora!?!?

— Sim. Por favor!

Ao andarem pelo corredor, desviando de outra aeromoça, afastam-se. Percebe que as duas são iguais, gêmeas no mínimo. Pensa que parece um fato, no mínimo curioso. Dirigem-se a cozinha do avião, quando uma mão o asfixia. Tenta se desvencilhar, mas a força é surpreendente, a aeromoça apenas sorri, acariciando sua face. A pressão aumenta, o corpo fica pesado, desmaia.

Um sobressalto. Acorda afobado.

— Calma! Logo chegaremos, já são 2 horas da madrugada, querido.

— Estava sonhando.

— Parecia mais um pesadelo. Viagens de ônibus são exaustivas mesmo.

— Que luz é essa?

— Nãooooooo!!!!

Um caminhão colide com o ônibus de passageiros, deixando o casal com os corpos despedaçados em meio as ferragens. Observa a esposa irreconhecível, enquanto agonizante, aguarda o resgate. Mas é tarde demais.

Abre os olhos, salta da cama e corre para o banheiro.

— Nossa, achei que fosse vomitar. Que ressaca. Cada pesadelo estranho.

Reflete sobre a vantagem de morar sozinho, sem satisfações de pileques. Liga o rádio.

— Bom dia, ouvintes! Pra você ligados na madrugada, são 2 horas da manhã.

Batem na porta.

— Quem seria uma hora dessas?

No olho mágico ninguém aparece. Ao seu virar, uma criatura surge, fazendo as luzes do cômodo apagarem, de toda a residência, acredita que da rua toda, bairro, cidade, país, continente, o mundo apagou. É socado, recebe chutes, mordidas, tapas. Depois é jogado contra a mesa de vidro, espatifando, cortando-se em meio aos cacos. A mão segura o caco, enterrando-o em seu braço, depois nas pernas, rasgando. Um pedaço menor é cravado em sua órbita direita, sente quando lhe trespassa a garganta uma fração maior de vidro. Engasga com o sangue. Sufoca. Não vê mais nada.

— Filho! Acorda para tomar seu remédio, já são 2 horas da manhã. Está na hora.

Suado, abre as pálpebras, observando a figura materna portando um copo de água em uma das mãos, na outra, um comprimido. Abre um sorriso.

— Mamãe te ama!

Após essa declaração, sua mãe enterra uma tesoura no próprio pescoço, o sangue ensopa o pijama do filho. Ele se levanta, vai até o telefone, consegue ligar para o número de emergências. Uma mão enrola o fio do telefone em seu pescoço, asfixiado até falecer.

Bate os braços, mas estão lentos. Está dentro d’água, parece uma piscina. Está amarrado, não consegue sair, o ar escasso, se debate. Vê um objeto caindo em câmera lenta, um relógio, a hora indica que são 2 da madrugada em ponto. A última visão que teve antes de afogar-se.

A mente começa a voltar, a mulher nua cavalga em seu membro rígido, seios firmes que afrontam sua face. Corpo moreno, risada maliciosa. Esfrega as narinas, sente a cocaína fazendo efeito, mais alucinações, o coração acelera.

— São 2 horas da manhã, a gente ainda tem muito o que foder, seu filho da puta.

O braço fica dormente, uma dor invade o peito, a mulher assustada observa os olhos vidrados, fixos, escorre um filete de sangue da narina esquerda. Logo após, os olhos fechados, de uma vez por todas.

Um impacto violento no peito, energia passando pelo corpo inteiro, explodem os músculos.

— Vamos tentar ressucitá-lo de novo. São 2 da manhã e temos muito o que fazer nesse plantão.

— Acordou, desgraçado?

— Onde estou?

— Todos vocês, amarrem ele de novo. Peguem aqueles cassetetes, quebrem os ossos desse patife. Arrebentem ele. São 2 da madrugada, temos tempo.

— Não, por favor.

Uma chuva de pancadas. Fica tonto, tudo enegrece.

— Imbecil!! Acertou a cabeça do idiota com muita força. Matou antes de sofrer como deveria.

— Senhor!!

— O quêêê??

Se acalme, apenas passamos por um túnel. Não gosta de viagens de trens?

— Desculpe, ando estressado, tendo pesadelos.

— Tudo vai ficar bem. Também perdi o sono. Vamos ficar conversando. Só que baixinho, afinal de contas, são 2 horas da madrugada...