"A Masmorra" 5ª e 6ª Partes
5ª Parte
O tempo passou depressa. Os remédios me faziam dormir muito e eu também procurava dormir o mais que eu pudesse, para não me encontrar com o João e muito menos com a Juliana. Ela estava cada vez mais gorda, mais feia, chorando pelos cantos e, acho até que andava bebendo.
Eu devia estar horrível. Eu não, o João. Não me olhava no espelho, então não tinha esse desgosto.
Um dia a ouvi conversando com alguém ao telefone. Parecia entusiasmada. O médico disse-lhe que eu tive progressos e que havia uma nova técnica com células-tronco que poderia desobstruir alguns coágulos. Eu poderia voltar a falar e movimentar pelo menos um braço. Com isso, provavelmente eu, em breve poderia até voltar ao trabalho.
Eu congelei no ato. O João vai voltar? Vai trabalhar de contador? Não! Não quero de jeito nenhum. Eu não sou mais o João, não sou casado com a Juliana, não sou contador.
Senti um tremor no corpo, meu coração bateu descompassado, senti falta de ar, uma quase tosse...
Depois disso parece que tudo ficou calmo. Não ouvia mais nada. Não tinha quarto, fios penico, fraldão, Juliana, nada. Só o silêncio. O silêncio profundo e a maresia. Eu estava livre de mim, finalmente. Livre da Juliana, do livro-caixa. Livre da minha insuportável existência. Livre da minha incompetência em tocar a vida. Livre, livre.
6ª Parte
Eu estava especialmente feliz naquele dia. Recebi um convite para expor meus quadros no museu do Prado, em Madri. Minha obra estava sendo reconhecida mundo afora. Não me faltava prestígio, nem tampouco dinheiro para viver dignamente.
Alguém tocava a campainha insistentemente. Olhei pela janela e vi uma mulher um tanto desarrumada, cabelos desalinhados, rosto pálido com um ar tristonho e sombrio. Logo achei que seria alguém pedindo algum auxílio.
Tomei um susto ao vê-la. Era uma senhora que me parecia muito conhecida. Não sei por que, meu coração gelou. Ela trazia um livro debaixo do braço.
-Eu queria falar com o Sr. Felipe, o pintor.
-Sou eu mesmo, minha senhora.
-Eu sou a Juliana.
Ela esperou que eu lhe dissesse algo, como se a simples menção de seu nome iria fazer-me associar a ela.
-Sim, prazer dona Juliana, o que a senhora procura?
-Eu tenho um livro com reproduções de suas pinturas...
- Ah, que bom, a senhora quer um autógrafo?
-Não, claro que não! Eu quero saber porque o senhor me usou como modelo para seus quadros?
Nesse momento eu uni os pontos. Ela era idêntica às mulheres que eu pintava. Tive um estranho mal estar, não sei por que, mas ela me incomodava.Um arrepio na espinha e uma tontura que quase me fez cair.
Ela estava indignada, pois disse estar passando por sérias dificuldades e via que meus quadros a retratavam de maneira áspera, cruel. Os quadros em questão a retratavam mais nova e bonita, com uma sensualidade transbordante e ao mesmo tempo uma conotação demoníaca.
Havia um que ela aparecia nua, crucificada e uma multidão atirava pedras; outro, ela esfaqueava no peito um enfermo indefeso em seu leito de morte; mais um em que ela era estuprada por figuras mitológicas, num cenário de fogo e horror, mas ela se deliciava naquela orgia.
Transtornada, implorava por explicações.
-O que eu tenho a haver com esses quadros?
Eu não sabia o que dizer. Era uma surpresa para mim também. Eu nunca a tinha visto antes.
-Não é a senhora, me desculpe. Pode ser parecida, mas é fruto da minha imaginação. Só isso.
Agora a senhora vai me desculpar, mas eu tenho que...
-Mas o senhor pintou até mesmo uma marca que eu tenho de nascença no seio direito...
-Desculpe-me, foi coincidência. Eu não a conheço.
Fechei a porta antes que ela retrucasse novamente. Ela partiu cabisbaixa, lentamente, sem rumo certo. Eu fiquei atordoado, voltei ao meu ateliê e fui conferir meu último trabalho.
Se ela o visse seria um choque ainda maior. Ela era retratada, agora mais velha, triste, abandonada, caída numa masmorra escura, disputando migalhas com os ratos. Na parede havia um quadro torto de um homem com sangue nos olhos e uma faca no peito.