El hombre muerto - Tradução literária
Prólogo
Tradução (realizada por mim) do conto El hombre muerto, de Horacio Quiroga (1879 – 1937). Escritor uruguaio, pertenceu aos movimentos naturalista e modernista, destacou-se na literatura latino-americana, sobretudo, por seus contos. Seus temas abordavam eventos fantásticos e macabros, na mesma linha de Edgar Allan Poe.
HOMEM MORTO
O homem e seu facão acabavam de limpar a quinta rua do bananal. Faltavam ainda duas ruas, mas como nestas se propagavam alecrins-do-campo e malvas-silvestres, a tarefa que tinham a frente era pouca coisa. O homem lançou, em seguida, um olhar satisfeito aos arbustos roçados e cruzou o alambrado para estender-se um instante no gramado.
Mas ao baixar o arame farpado e passar o corpo, seu pé esquerdo resvalou sobre um pedaço de cortiça desprendida do poste, ao mesmo tempo em que o facão lhe escapava da mão. Enquanto caia, o homem teve a ligeira impressão de não ver o facão inteiramente no chão.
Já estava estendido no gramado, deitado sobre o lado direito, tal como ele queria. A boca, que acabava de abrir-se em toda sua extensão, acabava também de fechar-se. Estava como havia desejado estar, os joelhos dobrados e a mão esquerda sobre o peito. Só que detrás do antebraço, e imediatamente por baixo do cinto, surgiam de sua camisa o cabo e a metade da lâmina do facão, mas o resto não se via.
O homem tentou mover a cabeça em vão. Olhou de soslaio a empunhadura do facão, ainda úmida do suor de sua mão. Apreciou mentalmente a extensão e a trajetória do facão dentro do seu ventre e adquiriu a fria, exata e inexorável certeza de que acabava de chegar ao fim de sua existência.
A morte. No decorrer da vida se pensa muitas vezes no dia em que, após anos, meses, semanas e dias preparatórios, chegará a nós o umbral da morte. É a lei fatal, aceita e prevista; tanto que, costumamos nos deixar levar prazerosamente pela imaginação a esse momento, supremo entre todos, em que lançamos o último suspiro.
Mas entre o instante atual e essa derradeira expiração, quais sonhos, transtornos, esperanças e dramas presumimos em nossa vida? O que nos reserva ainda esta existência cheia de vigor, antes de sua eliminação do cenário humano? É este o consolo, o prazer e a razão de nossas divagações mortuárias: tão distante está a morte, e tão incerto o que devemos viver ainda!
Ainda? Não se passaram dois segundos: o sol está exatamente à mesma altura; as sombras não avançaram um milímetro. Bruscamente, acabam de se resolver para o homem estendido, as divagações a longo prazo: está morrendo. Morto. Pode se considerar morto em sua cômoda postura. Mas o homem abre os olhos e mira. Quanto tempo se passou? A qual catástrofe sobreviveu no mundo? Qual transtorno da natureza transcende o terrível evento?
Morrerá. Fria, fatal e inescapavelmente, morrerá.
O homem resiste – “É tão imprevisto esse horror!” – e pensa: “É um pesadelo. É isto!”. O que mudou? Nada. E observa. Não é por acaso este bananal? Não vem todas as manhãs limpá-lo? Quem o conhece como ele? Vê perfeitamente o bananal, bem desbastado, e as largas folhas desnudas ao sol. Ali estão, bem próximas, desfiadas pelo vento. Mas agora não se movem… É a calma do meio-dia, deve ser 12 horas.
Entre as bananeiras, ali acima, o homem vê desde o duro solo até o telhado vermelho da sua casa. À esquerda entrevê o monte e a capoeira de canelas. Não alcança mais a visão, mas sabe muito bem que atrás de suas costas está o caminho para o porto novo; e que na direção da sua cabeça, ali abaixo, jaz no fundo do vale o Paraná adormecido como um lago. Tudo, tudo exatamente como sempre; o sol de fogo, o ar vibrante e solitário, as bananeiras imóveis, o alambrado de postes muito grossos e altos que logo terá que trocar…
Morto! Mas é possível? Não é este um dos tantos dias em que saiu, ao amanhecer, de sua casa com o facão na mão? Não está ali mesmo com o facão na mão? Não está ali mesmo, a 4 metros dele, seu cavalo, seu malacara[1], cheirando calmamente o arame farpado?
Mas sim! Alguém assobia. Não pode ver, porque está de costas para o caminho; mas sente ressoar no pontilhão os passos do cavalo. É o garoto que passa todas as manhãs até o porto novo, às onze e meia. E sempre assobiando. Desde o poste descascado que toca quase com as botas, até a cerca viva de arbusto que separa o bananal do caminho, há quinze metros compridos. O sabe perfeitamente bem, porque ele mesmo, ao estender o alambrado, mediu a distância.
O que se passa, então? É esse ou não um simples meio-dia dos tantos em Missões, em seu arbusto, em seu curral, no bananal ralo? Sem dúvida! Gramado curto, cones de formigas, silêncio, sol a pino… Nada, nada mudou. Somente ele é distinto. Há dois minutos sua pessoa, sua personalidade vivente, não tem nada a ver com o curral, que moldou ele mesmo à enxada, durante cinco meses consecutivos, nem com o bananal, obras de suas únicas mãos. Nem com sua família. Foi arrancado bruscamente, naturalmente, por obra de uma lasca notável e um facão no ventre. Há dois minutos: morre.
O homem, muito esgotado e estendido na relva sobre o lado direito, se reluta a aceitar um fenômeno de tal transcendência, ante o aspecto normal e monótono de quem observa. Sabe bem a hora: às onze e meia… O garoto de todos os dias acaba de atravessar a ponte.
Mas não é possível que tenha resvalado!… O cabo de seu facão (logo deverá trocá-lo por outro; resta-lhe pouco uso) estava perfeitamente oprimido entre sua mão esquerda e o arame farpado. Após dez anos de bosque, ele sabe muito bem como se manipula um facão de arbusto. Somente está muito cansado do trabalho desta manhã, e descansa um momento como de costume.
A prova? Essa grama, que entra agora pela comissura de sua boca, a plantou ele mesmo nestes montículos de terra distantes um metro, um do outro! Sim, esse é seu bananal; e esse é seu malacara, resfolegando cauteloso diante dos arames farpados! O vê perfeitamente; sabe que não se atreve a dobrar a esquina do alambrado, porque ele está deitado quase ao pé do poste. O distingue muito bem; e vê os fios escuros de suor desprendendo-se da cernelha e da anca. O sol sobe a pino, e a calma é muito grande, pois nem uma franja das bananeiras se move. Todos os dias, como esse, tem visto as mesmas coisas.
Muito exausto, mas apenas descansa. Deve ter passado já vários minutos… E às onze e quarenta e cinco, ali acima, desde o chalé de telhado vermelho, descerão até o bananal, sua mulher e seus dois filhos, buscando-o para almoçar. Ouve sempre, antes das demais, a voz de seu garoto menor querendo soltar-se da mão de sua mãe: Papai! Papai!
Não é isto?… Claro, ouve! Já é hora. Ouve definitivamente a voz de seu filho… Que pesadelo!… Mas é um dos tantos dias, trivial como todos, é tão óbvio! Luz excessiva, sombras amareladas, calor silencioso de fornalha sobre a carne, que faz suar o malacara imóvel perante o bananal proibido.
Muito cansado, muito, mas nada mais. Quantas vezes, ao meio-dia como agora, cruzou voltando para casa esse curral, que era capoeira quando ele chegou, e antes havia sido mata virgem! Voltava então, muito fatigado também, com seu facão pendurado na mão esquerda, a lentos passos.
Pode ainda distanciar-se com a mente, se quiser; pode se quiser abandonar um instante seu corpo e ver desde o quebra-mar por ele construído, a trivial paisagem de sempre; o pedregulho vulcânico com gramas rígidas; o bananal e sua areia vermelha: o alambrado apequenado na ladeira que se incorpora até o caminho. E mais longe ainda ver o curral, obra única de suas mãos. E ao pé de um poste descascado, deitado sobre o lado direito e as pernas recolhidas, exatamente como todos os dias, pode ver a ele mesmo, como um pequeno vulto ensolarado sobre o gramado – descansando, porque está muito cansado.
Mas o cavalo, listrado de suor, e imóvel de cautela perante o esquinado do alambrado, vê também o homem no solo e não se atreve a vaguear pelo bananal como desejaria. Diante das vozes que já estão próximas – Papai! – volta um longo, longo instante as orelhas imóveis em direção ao vulto, e tranquilo enfim, decide passar entre o poste e o homem estendido que já descansou.
1. Aplica-se ao animal com malhas brancas desde a parte anterior da cabeça até o focinho.
Para acessar o conto no idioma original ou ler outros contos traduzidos, visitem meu blog pessoal:
https://retalhosdetinta.wordpress.com
Espero vocês!!